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Cristina Canale: a parte pelo todo

 


Victor Gorgulho | 2023

 

Quando o leitor estiver com a presente publicação em mãos – em algum momento do segundo semestre do ano de 2023 –, estaremos, rapidamente, a nos encaminhar ao início do ano de 2024, já logo ali à espreita, quando estaremos a celebrar as quatro décadas de produção artística de Cristina Canale (Rio de Janeiro, 1961). Este texto, portanto, aponta, por meio de notas, reflexões e outros fios soltos, para desejos e vontades distintas, tentaculares, de celebrar o percurso artístico de Canale, de 1984 até os dias de hoje.

Se há, portanto, uma vontade latente nesta publicação de debruçar-se sobre a produção pictórica de retratos sobre a qual a artista vem se dedicando nos últimos anos, há também a intenção inegável de retornar a momentos passados de sua carreira para (re)apresentar sua produção a novos e antigos públicos do circuito da arte como para, quem sabe, tecermos novas reflexões acerca de outras narrativas presentes nestes quarenta anos de trabalho da artista. Busco aqui, por rotas incertas, linhas tortas e pinceladas erráticas, esboçar novos olhares sobre o luminoso caminho traçado por Canale até aqui. Divido este ensaio,, então em duas partes, a partir da fatura da artista.


A década de 1980 e o início dos anos 1990

Quantas gerações cabem em uma? Nem mesmo é preciso gozar de tamanha familiaridade com os meandros da história (e das estórias...!) da arte brasileira das últimas décadas para já ter ouvido falar na amplamente disseminada expressão “Geração 80”, oriunda do título da mostra Como vai você, Geração 80?, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984, sob a curadoria de Marcus Lontra e Paulo Roberto Leal. Se, notoriamente, havia o ímpeto de reunir sob um mesmo “guarda-chuva” conceitual a produção em pintura de uma ampla gama de jovens artistas ali aglutinados, é preciso mais e mais que olhemos em retrospecto tal momento histórico, de modo não a negá-lo ou algo parecido, mas, talvez, de maneira a enxergá-lo através de lentes mais cuidadosas, olhares plurais, reconhecendo as múltiplas vontades artísticas ali presentes. Sim, decerto diversas das produções poderiam (e foram) englobadas em um mesmo pensamento teórico-conceitual elaborado pela organização da mostra e por críticos da época; já tantas outras eram inegavelmente poéticas, um tanto singulares ou mesmo desviantes do statement geral que, quem sabe, merecem hoje receber especial atenção para que não sejam sufocadas pelo tal fantasma histórico que seguiremos a chamar de “Geração 80”.

Na produção de Canale, por exemplo, nos primeiros anos da década de 1980, a artista dividia-se entre a faculdade de economia e os cursos livres do Parque Lage. Lá, a prática do desenho imperava como uma escolha consciente e afirmativa da artista, por experimentar apenas sobre a superfície do papel – usualmente em pequenas escalas, em trabalhos que oscilavam entre um desejo de uma representação pouco óbvia de paisagens diversas, assim como já pareciam dotados de um peculiar aspecto mezzo abstrato, mezzo figurativo, que apareceria em sua produção, ao longo de seu desenvolvimento, nos anos seguintes. “Sem medo nem esperança”, não demorou para que a artista passasse a se aventurar no campo da pintura ainda naquela primeira metade da década de 1980, não só encarando o vazio existencial que vem acompanhado das telas em branco, mas também tateando, com a delicadeza e a calma que lhe são características, as inúmeras possibilidades matéricas da tinta. Cunhar o termo “matéria-tinta” não é em nada hiperbólico, diante do fato de que, sabidamente, os artistas ligados à Geração 80 não economizaram em camadas robustas e espessas, ao utilizar tanto a tinta a óleo quanto acrílica na superfície de telas que se revelavam, enfim, densos experimentos frequentemente pautados por uma única ordem criativa maior: o desejo de expressão, que viria da devoração de diversas linguagens e correntes pictóricas que circularam, anos antes e durante essa própria época, especialmente pelo circuito internacional da arte.

Em 1987, Canale realizou sua primeira exposição individual, no Centro Empresarial Rio, apresentando trabalhos que, segundo a própria artista, em fala pública no contexto da mostra, evidenciam que em sua produção de então “tudo é muito misturado”. É o crítico Frederico Morais quem escreve uma pequena resenha (o primeiro texto crítico da carreira da artista, diga-se), intitulado “Cristina lutadora”. Para Morais, a jovem artista de 25 anos atravessava a via crucis destinada a todo grande artista que busque persistir na prática diária de enfrentar seus medos e inseguranças diante do vazio e do silêncio de seu ateliê. Cristina seguiria a lutar, sabemos. “Diante de suas cinco grandes telas em exposição, sinto este impasse, mas também a tentativa de o superar. Ou seja, tanto o seu depoimento quanto a sua pintura indicam que criar arte continua sendo um processo doloroso e difícil. Há, de fato, entre o artista e a tela, uma ‘luta corporal’”, Morais escreve, justificando o uso do termo “lutadora” no título de sua resenha. Ele não estava errado – o tempo, naturalmente, foi a prova indelével de onde esse embate chegaria. Dentro da metáfora tão direta quanto bem-humorada de Morais, podemos afirmar, evidentemente, que Canale viria a vencer tal embate.

Majoritariamente produzindo em consonância com seus pares – entre os quais figuras que Canale carrega como amigos e parceiros de seu percurso artístico até hoje, como Beatriz Milhazes (1960), Daniel Senise (1955), Luiz Zerbini (1959) e outros mais –, a artista passou a realizar telas em grande escala, onde um desejo paisagístico parece imperar sobre o todo apresentado. É prudente utilizarmos aqui a expressão “desejo paisagístico”, pois, apesar de regular-se temática e formalmente com seus pares, as ditas paisagens de Canale raramente resultavam em bucólicas cenas que remetiam à típica representação moderna da paisagem, tampouco respondiam à memória imediata da paisagem urbana que a cercava. Talvez residisse aí certo ponto de ruptura entre a produção de Canale e a de seus companheiros geracionais. Ao passo que partilhava de tal uso denso e espesso da matéria sobre a superfície de suas pinturas, diferenciava-se, porém, à medida que referências em nada convencionais passaram a ditar seu peculiarmente singular – mais uma vez – “desejo paisagístico”. “Jogava a tinta na tela e deixava rolar, depois definia o que me interessava”, afirma a artista, em entrevista concedida ao crítico e curador Fernando Cocchiarale, em 2015. Foi assim que, por meio de um profícuo liquidificador de referências teórico-visuais, Canale embebedou-se desde Jackson Pollock (1912-1956) até a arte japonesa, de Claude Monet (1840-1926) a Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), da pintura renascentista a Gerhard Richter (1932). Mas não sem antes precisar executar um mergulho transatlântico que redefiniria os rumos e contornos que sua obra viria a ganhar, dali em diante.

No ano de 1993, de certo modo convencida de estar descontente com os rumos que sua produção vinha tomando em terras brasileiras, a artista tomaria o rumo de Düsseldorf, na Alemanha, onde, sob o auxílio de uma bolsa de estudos por ela conquistada, estudaria e produziria sob a orientação do artista conceitual Jan Dibbets (1941). Para que não me estender nesse período inicial de sua estadia alemã, busco ser breve: apesar das inúmeras contribuições que Dibbets ofereceu à Canale, foi a própria artista quem parece ter, metonimicamente, encontrado soluções que, apesar de aparentemente simples, precisaram desse tempo de maturação e investigação, entre o Brasil e a Alemanha, para se revelarem e finalmente desabrocharem após uma longa jornada oceânica. Entre elas, um reencontro com um dos denominadores comuns de qualquer prática em desenho ou pintura: a linha, objeto de subsequentes experimentos da artista, que buscava, naquele momento, uma simplificação radical de sua práxis, realizando obras que frequentemente a conduziram a um necessário retorno ao ponto inicial do desenho. Papel, aquarela, linhas, manchas. Parece ter sido preciso distanciar-se para ir ao encontro da mais simples nuance do gesto, da fatura errática que produzia linhas que, mesmo desencontradas, estavam a encaminhar a artista a um novo lugar em sua produção. “Deus escreve certo por linhas tortas” – o ditado popular, apesar de seu tom jocoso, parece ali ter se encaixado perfeitamente.


Da segunda metade da década de 1990 até os dias atuais

Fast forward a jato, rompendo furiosamente a distância transatlântica que afastava o Brasil da Alemanha; a sempre ensolarada América do Sul conectou-se, por Canale, à palidez das faces e paisagens europeias. Se, na época, ainda permanecia um tanto arraigada em um imaginário coletivo a ideia de ditos velho e novo mundos, tais alcunhas não apenas se embaralharam, mas também caíram por terra, verdadeiramente, diante da artista. Foi por meio de um salto por ela empreendido – em larga margem, a despeito dos conselhos e caminhos sugeridos por seus orientadores e pares masculinos do campo artístico europeu de então – que Canale, ainda na primeira metade da década de 1990, pareceu encontrar não só recursos e procedimentos (palavra tão cara às práticas de seus companheiros de “Geração 80”), mas também um certeiro caminho em direção a uma linguagem visual que lhe permitiria percorrer a superfície da tela de maneira radicalmente distinta de tudo o que havia experimentado até tal ponto.

Talvez tenha sido efeito indireto da água que Canale atravessou ao cruzar o oceano; talvez tenha sido mera epifania ótico-conceitual. Fato é que a densidade matérica das pinturas da artista dos anos 1980 para o início dos anos 1990 deu lugar a outra fatura, que passou a apresentar uma considerável liquidez, como se os experimentos com a simplicidade do contorno das linhas e das manchas sobre a superfície dos papéis e das telas partilhassem de um único objetivo: diluir o que antes se apresentava quase feito rocha, massa bruta e impenetrável. Especialmente em suas telas realizadas a partir do ano de 1995, Canale inaugurou uma relação com suas pinturas – no eterno embate citado anteriormente por Morais – em que, no lugar do uso de um gestual pesado, suas mãos viriam deixar com que a tinta praticamente apenas escorresse, suavemente se derramasse pelo plano visual. Em vez de se ocupar (ou mesmo se aterrorizar?) com a aparente necessidade de preencher o fundo da tela ou de dar um sinuoso destaque às figuras que até então faziam parte de seu repertório, Canale passou a catalisar, liquidificar e solidamente desfazer tudo o que vinha praticando, incessantemente, no plano da pintura. Nascia, então, uma nova visualidade e – por que não? – uma nova artista.

A ideia de “a parte pelo todo”, que nomeia o título-hipótese deste texto, busca dar sentido ao talvez elemento central das subsequentes mudanças e novos procedimentos que Canale passou a incorporar em suas pinturas, a partir, sobretudo, da segunda metade da década de 1990. Se falamos, há pouco, da forma como a artista passou a lidar de distintas maneiras com o fundo de suas telas, é na seção frontal do plano pictórico – espaço habitado pelas figuras criadas pela artista, frequentemente formas abstratas que evocavam o universo botânico/vegetal – que um aparente “vácuo” parece apontar para uma chave conceitual que abriria caminhos múltiplos dentro do processo da artista. Usualmente ganhando contornos ovoides (mais ou menos circulares, mais ou menos disformes), esses trechos passam a ser trabalhados cada vez mais com extremo cuidado e polidez por Canale, assumindo aqui, novamente, o tal caráter metonímico que sua pintura muitas vezes incorpora, dando a uma de suas seções tal peso e importância que conseguem, por si, falarem pelo todo do plano pictórico. “A parte pelo todo” é como chamo essa espécie de procedimento pictórico realizado pela artista.

Se, em um primeiro momento, essas formas parecem responder ao processo de depuração pelo qual as pinturas de Canale passaram do início da década de 1990 até pelo menos sua metade, nos trabalhos datados do final daquela década, vemos a artista experimentar, de múltiplas formas, as possibilidades dessa enigmática figura-fantasma que passa a se tornar reincidente em suas telas. Essas figuras-fantasmas passam a ganhar contornos insuspeitados, ainda que absolutamente contundentes, na medida que a artista empresta a essas formas o contorno figurativo de uma poltrona, de uma piscina, uma saia, uma árvore, um rosto e de tantas outras formas figurativas afins. Mora aqui, podemos concluir, a radical tomada de uma posição que a pintura de Canale assume, entre os campos da abstração e da figuração. Suas telas fincam bandeira em territórios deliberadamente híbridos, compostos pelas duas esferas do fazer pictórico, aqui convivendo em plena harmonia e singularidade, fruto do alcance de uma verdadeira maturidade do processo da artista. Mais ou menos abstratas, mais ou menos figurativas – pouco importará daqui em diante! –, as pinturas de Canale nos fascinam tanto por suas “partes” como pelo seu “todo”, ainda que o pensamento acerca de ambas as dimensões caminhe em paralelo dentro da prática da artista.

Por fim, se a presente publicação busca, entre outros objetivos, lançar uma especial luz sobre a produção de retratos da artista, finalizo este texto com uma pequena e delirante elucubração acerca desta série de trabalhos. Não seria errado afirmar que os rostos representados por Canale, quase sempre desprovidos de olhos/bocas/narizes, são frutos (eles também) da descoberta já longínqua das tais figuras ovoides-vegetais-disformes sobre as quais Canale se dedicou a investigar a partir de meados da década de 1990. No entanto, se observados longa e atentamente, os rostos de seus retratos partilham com essas formas algo de assombroso na produção de Canale, como um todo: assim como as seções aparentemente “vazias” de suas telas nada tinham de inócuas, despropositadas, as faces de Canale tampouco são meras estruturas corpóreas à espera de que a artista lhes atribua as formas que parecem lhes faltar.

Arrisco dizer que somos então atravessados por uma epifania: os rostos de Canale têm, sem dúvida, olhos, bocas, narizes e tantas outras formas mais. A maestria do processo da artista talvez seja nos fazer acreditar na ideia de um vazio aparente – tolice pura a nossa! A verdade é que apenas nós não somos capazes de ver tais formas ali representadas, ao passo que apenas os olhos cristalinos de Cristina Canale as veem constantemente, como se nunca tivessem deixado de ali estarem, perfeitamente delineadas sobre a superfície de suas telas. A tal pintora “lutadora” que Frederico Morais havia identificado, em sua jovem figura, na metade da década de 1980, foi, e seguirá sendo, uma exímia praticante do exercício físico, cerebral, teórico, místico (e de tantas camadas mais) que é a produção no campo infindo da pintura. Sigamos atentos às suas próximas pinceladas: sejam elas visíveis, invisíveis, opacas, translúcidas, aparentes, saturadas, pálidas ou afins.



Victor Gorgulho é curador, jornalista e pesquisador. Graduado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio, já curou diversas exposições individuais e coletivas, no Brasil e no exterior, trabalhando com artistas de diferentes gerações. Coorganizador, junto da crítica e curadora de arte Luisa Duarte, do livro No tremor do mundo – Ensaios e entrevistas à luz da pandemia (Editora Cobogó, 2020). Colaborou com veículos como Folha de S.Paulo, El País Brasil, Terremoto, VICE e Jornal do Brasil. Foi curador convidado da segunda edição do programa Pivô Satélite, do Pivô Arte & Pesquisa, em 2021. A partir de 2022, assume a posição de curador-chefe do Instituto Inclusartiz, no Rio de Janeiro.
 

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