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Do corpo à forma, da forma ao mundo

 


Pollyana Quintella | 2024

Há quase quarenta anos, Cristina Canale produz uma obra dedicada a recusar sentidos unívocos, interessada nas ambivalências contidas entre transparência e opacidade, narrativa e mudez. Da pintura matérica à linha, da linha à forma, da forma ao mundo, trata-se de um percurso construído na interação constante entre a produção de reconhecimento (familiaridade) e desconhecimento (falha e subversão da própria ideia de significação). Na medida em que opera entre o desejo de erigir sentido e provocar sua própria dissolução, seu repertório nos convida a encarar a figuração das coisas na condição de sua frágil e delicada legibilidade.

Tendo despontado como parte da celebrada Geração 80 (cuja mitificação não ajudou a endereçar as singularidades e diferenças do grupo que a integrava), seu trabalho derivou rapidamente para ser lido sob seu próprio nome. Em poucos anos, logo após ter sido aluna da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, ela migraria dos papéis recortados em forma de silhuetas humanas para a experimentação de formas arquitetônicas e símbolos metafísicos como círculos, cruzes e triângulos, até finalmente encontrar fartas paisagens montanhosas de considerável apelo plástico. Naquela altura, seu arcabouço se formava tanto por imagens da história da arte, preservadas e filtradas pela tradição, quanto por imagens que compõem a vida cotidiana através de um meio urbano saturado de informações e meios de reprodução em massa, acrescidas ainda da experiência de viver especificamente no Rio de Janeiro, cidade-imagem ao seu modo. Essas primeiras paisagens de Canale, já dotadas de uma escala física considerável, expressam forte densidade pictórica, por vezes reforçada ainda pelos tecidos grossos que estruturam a tela, cheios de textura.[1]

Apesar da sinuosidade tipicamente carioca, elas se aproximam do repertório da pintura chinesa e das gravuras japonesas (lição aprendida com o melhor Guignard), caracterizadas pela atmosfera enevoada — que faz tudo flutuar diante dos olhos — e a perspectiva construída com a sobreposição de camadas, sem horizonte. Se lá, no entanto, a névoa esteve a serviço de uma contemplação pacífica, aqui a dissolução, aliada aos ecos de um romantismo alemão, encontra certa agonia das formas. Em alguns casos, montanhas emergem de um fundo aquoso, como se pudéssemos observar sua formação geológica. Noutros, grandes escorridos dominam a tela, sugerindo fragmentos de paisagem apenas por algumas manchas de cor. Sua paleta é herdada não do repertório sombrio e melancólico de um Iberê Camargo, ancestral matérico ao seu modo, mas de um pós-impressionismo interessado em vitalizar as formas. A pintura vibra como uma superfície úmida tomada por líquens, musgos ou gramíneas, vida que se alastra no desejo de encontrar espessura e materialidade. Finalmente, a imagem gasta da paisagem encontra o saber pictórico em voltagem lírica, afirmando a si como algo nunca plenamente estabelecido, mas em contínua transformação diante dos olhos.

A escolha da paisagem, porém, esteve longe do desejo de afirmar enfaticamente uma identidade cultural, o pertencimento a um determinado lugar ou a nostalgia das memórias longínquas da infância, embora essas instâncias estejam presentes em maior ou menor grau. Mesmo na enfática Rio 40º, cujo título dispensa apresentações, Canale parece a um só tempo entregar o clichê do cartão-postal e perturbá-lo. Ao conjugar a perspectiva euclidiana com a aérea, a pintura conduz o olho por um voo rasante, alimentado pela fantasia de tocar o território abrasado da representação. É papel da pintura elevar o termômetro da imagem para as altas temperaturas, retirá-la de sua passividade, fazê-la arder como lava, à nossa revelia. Somos levados a afirmar que toda paisagem é produção social, construção subjetiva e territorialidade simbólica e, portanto, refletir sobre o ambiente que nos circunda é sobretudo dedicar-se a compreender nossos modos de ver. Como disse outrora Maurice Merleau-Ponty, “Nada muda se ele [o pintor] não pinta a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível”.[2]

Tal abordagem da paisagem, se ainda guardava consigo algo de sublime e monumental, apegada ao gosto em checar até onde a vista alcança, foi dando lugar a um encontro mais íntimo com as coisas. As obras do início dos anos 1990 são enormes close-ups ao modo de um Claude Monet tardio — aquele recuperado pelos expressionistas abstratos —, também mestre na lição japonesa de suprimir o horizonte, ao explorar obsessivamente a plasticidade de seu querido lago em Giverny. Se Monet pintava lírios nenúfares, Canale parece ter pintado espécies outras, por vezes assemelhadas a rosas. Os fundos azuis-esverdeados dessas telas de mais de três metros sugerem ambientes aquáticos incapazes de servir de estrutura para esses tipos vegetais. As flores ora flutuam, como se levadas pela corrente da água, ora parecem fixadas sobre um não lugar, de difícil apreensão. Elas oscilam entre peso e leveza, deleite visual e indícios de apodrecimento, flertando com o gênero da natureza-morta. Nós, observadores, já não contemplamos a certa distância, mas somos convidados a imergir na tela, cuja escala desafia qualquer concepção de domesticidade erroneamente atribuída à pintura e seu motivo, bem como ao lugar de mulher artista. Sem margem ou profundidade, tais pinturas de Canale ampliam seu elogio às superfícies, e seus motivos florais, mais impacientes do que os do impressionista, alastraram-se até converter o que era lago em “muro”, como a própria artista gosta de afirmar.

O gosto por tal repertório persistiria com a mudança de Canale para a Alemanha em 1993, embora o modo de abordá-lo tenha mudado radicalmente, a começar pelas condições físicas. Deslocada de seu contexto, a artista abriu mão da estrutura de ateliê que a permitia pintar telas enormes e densas para apostar na rapidez dos cadernos diminutos, distanciando-se da experiência visual arrebatadora dos grandes formatos por uma visão mais matizada e medida. Com o pequeno, a visão aguda substitui a “periférica”, na promessa de que ocorra um envolvimento mais ativo. São dessa época as dezenas de desenhos de observação e aquarelas sintéticas que perseguem a descoberta de uma linha que pouco havia tido lugar até então. Buscando certa essencialidade da forma, tais obras são, a um só tempo, um todo e um fragmento, e serviriam de bússola para uma produção pictórica menos corpulenta, dedicada aos contornos e às transparências luminosas.

De volta ao médio e ao grande formato, as telas ainda apresentam motivos orgânicos, embora agora mais domesticados, filtrados por uma ideia de ornamento, tal qual fizera o art nouveau. A complexidade dos detalhes que predominava anteriormente dá lugar a uma maior percepção da cor a partir da exploração de áreas mais amplas. No entanto, suas formas dominantes, apesar de reconhecidas por nós, guardam consigo alguma estranheza sobrenatural. Se a história da arte ocidental reconhece na linha “a estrutura básica da ideia”, não é bem sobre o raciocínio projetivo que falamos aqui. A linha errante guarda ainda alguma intuição expressiva e vaporosa, a despeito do desejo em organizar o mundo.

As pinturas do final dos anos 1990 são testemunhas desse interesse crescente pela forma biomórfica, de estrutura fluida, capaz de expressar os princípios de crescimento e transformação contínuos que encontramos na natureza. Mais uma vez, o que está em jogo não é o imperativo da forma construtiva, para a qual um quadrado deve ser um quadrado — apegado à fantasia de uma linguagem transparente que tudo diz, caminhando de mãos dadas com o racionalismo progressista —, mas a sedução da forma ambígua e movediça, movente diante dos olhos, a um só tempo nuvem, ovo, bolha, concha, sofá, copa de árvore. Elas não deixam de mencionar os códigos do mundo, apesar de estranhá-los. São formas-figuras tratadas como planos espaciais, por vezes tão próximas dos olhos que parecem stickers (um bom exemplo é a emblemática Poltrona anos 60). Noutros casos, o bom uso das transparências sugere uma experiência de “profundidade rasa”. Matisseana, ela abusa do banho de luz que acende as coisas diante da banalidade do mundo material.

Notável ainda como, a partir desse período, Canale transita entre ambientes internos e externos sem nenhum constrangimento, saltando de um fragmento de sala de estar para a gravidade que opera sobre os frutos das árvores como quem deixa claro que não está a serviço da construção de grandes historinhas, senão comprometida com o desenvolvimento de sua própria linguagem. O que conecta esses trabalhos é justamente a livre analogia entre essas formas ovoides, como se fosse preciso testá-las à exaustão, alterando seus sentidos na medida em que muda o contexto circundante. Art is a fruit growing out of man like the fruit out of a plant like the child out of the mother, diria Jean Arp, mestre das biomorfias.

Acontece que há sim desordem no mundo, mas nem tanto. O início dos anos 2000 acompanhou a introdução de elementos arquitetônicos pontuais nas composições da artista, construções humanas de cunho mais geometrizante, dedicadas a estabilizar a construção do espaço e aterrizar a pintura. Piscinas, muros e cercas, traçados que delimitam o terreno, casas variadas, todos eles introduzem, com suas linhas bem demarcadas, alguma profundidade e volumetria (quando não um horizonte de fato), bem como um espaço delineado em camadas sucessivas, procedimentos fundamentais para a produção da artista.

Reforçando o trânsito livre de seu repertório, são também dessa época as pinturas de menor escala com motivos de bolsas que se assemelham, por analogia formal, à silhueta das casas maiores, como se comentassem, sob o bom humor característico da artista, uma outra escala dos abrigos. O tema aparentemente frívolo e feminino, quando visto mais de perto, revela uma densidade plástica não menos importante, de forte potencial abstrato. Não por acaso, passa também a predominar a experimentação de estampas e formas padronizadas (triângulos, bolhas, gotas…), que fazem o olho percorrer de modo dinâmico a superfície saltitante, realçando os contrastes colorísticos e as relações entre figura e fundo.

Daí em diante, o receio pela narrativa se reduziu, abrindo margem para uma abordagem mais próxima do gênero da crônica. A pintura procurou falar outras línguas. Figuras humanas e animais passam a integrar as composições, ora de corpos inteiros, ora apenas como fragmentos — algo raro, salvo seu período como aluna no Parque Lage. Eles pertencem a uma domesticidade burguesa que exala volúpia em seus detalhes, com ênfase na mítica feminina, seus códigos e rituais de gênero expressos em laços, vestidos estampados, sapatinhos e pernas cruzadas. Mais uma vez, porém, tais estereótipos despertam estranhezas e enigmas sedutores, perfurando a superfície do clichê. Em Ella, identificamos uma mulher de pernas cruzadas, mas a estampa geométrica de seu figurino, radicalmente planar, parece mimetizá-la no espaço circundante, suspendendo temporariamente a sua humanidade. Noutros tantos casos, a ausência de traços faciais bem demarcados confere às figuras uma presença fantasmagórica, de difícil localização. Elas não são nem abstratas o suficiente para serem ícones, nem particulares o bastante para denotar um indivíduo. Além disso, apesar da atmosfera narrativa, não há começo, meio, nem fim de conversa alguma, mas instantes pinçados e movediços como sonhos prestes a se desconstituir. O que está perturbado é a especificidade do momento que a pintura descreve. A combinação e o contraste de diferentes tratamentos pictóricos fazem com que a imagem ressoe por meio de ritmos temporais oblíquos, próprios de um espaço percorrido pela retina, a despeito do corpo.

Nesses meados dos anos 2000 há ainda a maturação de algo que vinha sendo ensaiado desde a década anterior: o desejo de que a pintura respire como um organismo vivo. Eis por que não vemos uma definição exata dos espaços entre os objetos, mas ligações porosas, capazes de carregar a imagem da sensação de movimento potencial, libertando-a do instante do qual derivou sua fonte original. Seus traços são como gestos fluidos, jamais encerram as figuras em sua própria forma, lembrando-nos de que as coisas vivas excedem os limites do corpo, tal como na mancha que envolve a raposa em Goodbye Logik. Em alguns casos, a repetição em cima dos temas também se faz presente, como quem insiste em um problema plástico ainda não plenamente resolvido, conectando formas de distintas fases da produção (a saia esvoaçante de Passante não seria um eco das formas ovoides que vimos no final dos anos 1990?).

Porém, algo contido naqueles rostos esvaziados clamava por mais investigação. De meados dos anos 2010 até bem recentemente, uma profusão de faces tomou conta da produção, como se a pintura fosse abrindo mão do entorno contextual e cênico para se aproximar mais intimamente de seus personagens. Apesar da presença massiva do rosto e da referência direta ao modo pelo qual o gênero do retrato e convencionou na história da arte, não nos cabe falar de identidade quando olhamos para essas obras, pois não há qualquer intenção de fixar uma aparência ligada aos sentidos clássicos de expressividade, individualidade e subjetivação.

Se há algo de retrato nessas figuras, talvez se dê por um uso vibrante e muito particular da cor, capaz de acendê-las e avivá-las como sujeitos. Suas composições estão repletas de geometrismos e padronagens, ostentando fragmentos de tecidos colados sobre a superfície (por vezes fazendo-nos confundir as relações entre figura e fundo), texturas acrílicas e sugestões de tridimensionalidade que transformam a fantasia de interioridade subjetiva do rosto em um devir pra fora, pura superfície. Estamos mais próximos da compreensão do rosto como suporte para uma infinidade de máscaras, um rosto polifônico, uma vez que não cessa de ser abertura para a possibilidade de tornar-se um Outro, mais do que oportunidade de definição do Eu. Giorgio Agamben afirma que “A linguagem é a apropriação que transforma a natureza em rosto. [...] A revelação do rosto é a revelação da própria linguagem”.[3] Daí somos levados a considerar que o que Canale persegue é o rosto da própria pintura, pouco a pouco novamente dissolvido em paisagem.

Formada por décadas de férteis interrogações, eis uma pintura jamais reduzida ao texto; que não abre mão de exibir seu próprio método, o modo pelo qual se torna o que é, indo e vindo no trânsito entre constituir e desconstituir as formas visíveis. Em seu caso, a inclinação abstrata jamais se opôs à imaginação, pois sua saída é sobretudo lírica: põe em xeque a suposta divisão translúcida entre objetividade e subjetividade (tão cara ao século XX), não para afirmar uma expressividade romântica e idealizada, mas para implicar o sujeito na própria carne da linguagem. Em contexto distinto, Toni Morrison já havia dito que “imaginar não é apenas olhar, ou olhar para; também não é se colocar integralmente no outro. É, para todos os fins, tornar-se”.[4] Aqui, no cerne da lição da pintura, a imaginação é finalmente tangível.


Notas

[1] É o caso de We are the children (1989), obra pintada sobre tecido gobelin dotado de um sutil alto-relevo de formas arredondadas, por vezes confundidas com a profusão de pinceladas sobre sua superfície
[2] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “A dúvida de Cézanne”. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 72.
[3] AGAMBEN, Giorgio. “Il volto”. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
[4] MORRISON, Toni. “Black matters”. In: Playing in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination. New York: Vintage Books, 1992, p. 4.





Pollyana Quintella (Rio de Janeiro, 1992) é escritora, pesquisadora e curadora da Pinacoteca de São Paulo. É doutoranda pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre em História da Arte pela mesma instituição, ocasião em que pesquisou a obra do crítico Mário Pedrosa. Atuou como curadora assistente no Museu de Arte do Rio (2018–2021) e curadora independente em parceria com diversas instituições brasileiras. Nos últimos anos, escreveu para periódicos nacionais e internacionais, com ênfase nas relações entre arte contemporânea, cultura visual e política. Dá aulas sobre arte brasileira em cursos livres.

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