Memento Vivere [1]
Marcelo Campos | 2023
Estamos vivos. Essa é uma declaração que precisamos celebrar, repetir, dela tomar consciência e, com isso, agir com responsabilidade. Declarar a vida é, também, atentar para garantir a vida, a nossa e a dos outros nós, fato central nas discussões sobre o biopoder e a biopolítica. A política de vida, hoje, passa a constituir o foco central da filosofia, das discussões socioculturais, e (por que não?) da arte. Cristina Canale declara a vida, como se pudéssemos respeitar a máxima de Carlos Drummond de Andrade que, impactado pelo cerceamento da liberdade, nos anos de chumbo, estimulava-nos a dizer: “os dias estão lindos!”. Drummond que seguiu na poesia os anjos tortos, as pedras nos caminhos, posicionou-se estarrecido pelo próprio estado de perplexidade diante do mundo.
“Memento vivere”, título que Cristina Canale escolhe para esta exposição, remete-nos à própria história da arte, já que o termo memento mori fora utilizado em referência à consciência da finitude, sobretudo presente em pinturas de naturezas-mortas que simbolizavam a morte com a representação de caveiras [vanitas]. De outro modo, uma pintora declarar, hoje, a vida refaz interesses e posicionamentos que se distanciam das muitas características hedonistas que foram associadas ao fazer artístico, constantemente impregnado por uma ideia de alienação. O que pode a arte diante das dores do mundo, diante da vida?
Pensar pintura e, ainda assim, seguir a lógica de atenção diante do que está no mundo é, de certo modo, equacionar perplexidades, tal qual nos propôs Drummond. E, com isso, reagir, experimentar, correr os riscos ao lado da vida das formas, dos materiais, atentar para as metamorfoses, as ameaças, as alterações.
Na série atual de Canale, vemos, sobretudo, a presença do retrato. No mundo atual repleto de autorretratos (selfies), a artista tensiona não o retrato que identifica pessoas específicas, mas a construção, o enquadramento, a representação da figura humana que se transforma, se dissolve e vai dividindo ombros, colos, terminando na forma oval de um rosto. Ao não identificar figuras específicas, inevitavelmente, entendemos a relação alegórica que tais imagens nos instigam a associar. Seriam, então, pinturas alegóricas, as construídas pela artista que amplia, ainda mais, tal interesse ao usar elementos exógenos ao nobre linho da pintura. Nas obras, paisagens, naturezas, elementos vegetais convivem com o alastrar das tintas, formando campos de cores que se distanciam e se aproximam dos mecanismos da figuração. Esses gestos conferem à produção de Cristina Canale um amplo repertório de experimentos perante interesses abstratos que acabam, hoje, por influenciar parte da produção contemporânea.
Imagem. Talvez, essa, uma palavra proibida pelas leituras sobre a história da pintura no Brasil. Com 40 anos de produção, Cristina Canale vivenciou as querelas pelas quais a relação entre pintura e representação foi combatida no Brasil, desde os interesses pela abstração das formas, capitaneadas pelo viés construtivo, aos usos de materiais menos nobres, então denominados populares. Hoje, a artista nos interpela com a questão: “mas o que importa na imagem?”. O mundo seguiu popularizando-as, forçando horizontalidades entre a vanguarda e o kitsch, entre construções identitárias, festas, carnavais e os salões da elite. Mas, a pujança do Brasil jamais permaneceu calada.
Corrobora-se, na produção de Cristina Canale, de modo ampliado, a partilha de interesses comuns a um momento da arte em que os materiais da arte deixam de pertencer aos constitutivos das técnicas convencionais, como a pintura e o desenho, e passam a bordejar uma plena liberdade de apropriações de tecidos e objetos baratos, vendidos no comércio popular das metrópoles.
Ao ouvir os interesses atuais da artista, evidencia-se o atritar da pintura e dos gestos. Percebemos, de outro modo, uma atração pela ideia de aproveitar a liberdade conquistada, experimentar as colagens, promover certa inadequação nas reações e encontros entre os materiais sobrepostos às telas da pintura. E, assim, atentar-se para os atritos, as irritações. Ao criar tais ruídos, Canale assume “uma pequena ambição de tridimensionalidade”, nas palavras da artista, compondo na planaridade da pintura certos ressaltos. E, assim, a busca dos materiais se associa ao cotidiano da vida. Os gestos que se fizeram históricos em sua produção, como o uso de meias de seda rasgadas, papelões colados, tecidos de gobelin, seguem atualizando-se. E, hoje, Cristina se mostra interessada em deixar o tecido mais evidenciado, com áreas inteiras listradas, com bolas, texturas e padrões, sem a intervenção da pintura.
Em vez de encontrar as pedras no caminho, forjá-las, produzi-las, questionando a própria primazia dos suportes, a nobreza das categorias. “Qual o tecido vai estar lá atrás?”, pergunta-se a artista no instante em que inaugura a instigação para o gesto primordial.
Um mito atravessa a recente série de Cristina Canale. Danae, princesa que partilhou do amor de Zeus e fora fecundada por ele com uma chuva de ouro. Nas pinturas da exposição, a presença do azul e dourado coincidem, então, com o mito e com o gozo de Danae. O gozo que será, então, em vez de uma pequena morte, uma declaração de vida e de liberdade.
“Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”, assim, Drummond nos prova que a vida prosseguirá.
[1] Texto originalmente escrito por ocasião da exposição individual “Memento vivere”, na Galeria Nara Roesler, São Paulo, 2023.