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Entre o ser e as coisas


Luisa Duarte | 2014



Entre o Ser e as Coisas, individual de Cristina Canale, possui em seu título uma pista preciosa para esmiuçarmos os vetores que norteiam a construção do conjunto de pinturas aqui apresentado. No contexto filosófico, Ser é o que está para além do campo físico e sensível, além dos fenômenos visuais; diz respeito ao mundo das ideias, dos conceitos. Existem as coisas, os entes: uma cadeira, um sapato, são coisas, são entes. E existem as ideias do que seja sapato, do que seja cadeira. Há uma ideia de caráter universal para uma multiplicidade de entes. O Ser doaria um sentido de raiz universal para as coisas.

A arte, a partir do final do século XIX, passa a ser vista como um lugar privilegiado para que o Ser do ente venha à luz e seja desvelado,sendo um âmbito no qual conteúdo sensível e conteúdo inteligível fundem-se e dão a ver e a pensar, simultaneamente. Note-se que esta maneira de ver o fato artístico não nasce com a filosofia, muito pelo contrário. Para Platão os artistas deveriam ser expulsos da cidade, pois inebriavam a mente ao  falsearem o mundo com imagens que não representavam a verdade, cuja verdade teria morada em um lugar para além do sensível, no que se convencionou chamar de metafísica.

Um correlato possível dessa paridade entre Ser e ente (coisa) no território da arte encontra-se no par abstração geométrica e figuração. A geometria, o grid, seriam expressões guiadas por uma crença na pureza da razão, na abstração cognitiva, procedimentos estes ancorados no sonho moderno. No Brasil, o Construtivismo, cujas bases estão na neutralidade da geometria, foi contaminado pelo Neoconcretismo: houve uma fusão entre as formas puras e o corpo, entraram em cena a organicidade, o acaso, a vida que passa.

Essa digressão pode nos ajudar a chegar aos vetores principais do programa poético de Cristina Canale. Desde os anos 1980 a artista vem construindo uma pesquisa rigorosa no campo pictórico. Se a tensão entre abstração e figuração hoje é central em sua obra, no início os pólos matéria e paisagem constituíam a dialética maior da pesquisa. Sabemos que a chamada volta da pintura na década de 1980 teve como traço marcante a presença matérica, que doava um caráter expressivo para o gesto artístico. Naquele momento, Cristina não se adequava a essa receita por inteiro: seus trabalhos lidavam com questões formais, faziam um uso intenso das cores, mas seu alvo era a construção de paisagens maleáveis, com tom mais solar e menos melancólico. Sua paleta era corajosamente mais aberta e diversificada do que a da imensa maioria de seus colegas de época,
que tomavam partido por uma monocromia nublada, escura, devedora da escola alemã de pintura neo expressionista.

Passados trinta anos daquele começo, essa tensão que visa desconstruir uma vontade de ordem e perenidade - ou melhor, escolhe habitar um espaço entre, que transita pela abstração, as linhas e a evocação de figuras, tudo isso em grandes manchas de cor - é vista em cada uma das obras de Entre o Ser e as Coisas, doando uma coesão aguda para a exposição como um todo. 

Vejamos como essas táticas poéticas acontecem na fatura das obras. Na tela Anjo vemos um padrão geométrico em verde e branco. Amalgamado a esse padrão surge a figura do que seria uma menina com asas de anjo que estende a mão para outro “alguém”, cuja roupa, rosto e corpo são informes. O que deveria ser figura torna-se abstração. E o que é abstração parece clamar por ser figurado.


Na hora em que a conclusão da cena, da narrativa, parece precipitar-se, há um intencional recuo. Não temos o todo dado. A pintura continua a interrogar o nosso olhar. A artista, tal como Penélope, constrói e desconstrói, bem sabendo que é justamente nessa dinâmica que encontra-se o método desviante de sua poética.

Esse caminho insuspeito, que possui no desvio um método, prossegue
em Barroco, na qual o fundo é organizado por linhas retas, uma espécie de fundamento necessário para que depois se possa alçar o vôo no qual a representação será posta em xeque. Uma padronagem com contornos orgânicos nas cores azul e branco concentra-se no meio do quadro. Aos poucos notamos que parece haver ali a figura de um animal ou mais de um (um galo e um cachorro?). A tela intencionalmente nos confunde, pois a cesura é o lugar que essa obra habita. 

O que deveria trazer a parcela de mundo representado, figurado, está esgarçado, turvo e interligado com o que é pura pintura, pura cor. Não só na tela Barroco, mas na obra de Cristina como um todo, há um constante questionamento da imagem. O uso de motivos tradicionais da pintura e de cenas do cotidiano, que supostamente nos trazem para perto, é tensionado: trata-se de um universo que soa, a um só tempo, familiar e estranho.

O uso de motivos tradicionais da pintura dentro de uma narrativa fragmentada, arredia a qualquer completude, cujas bordas estão sempre diluídas, onde navegamos em um mar sem orla, são todos aspectos que corroboram para o retorno a uma questão primordial: a crise da representação posta na modernidade e que intensifica-se no contemporâneo. A pintura surge como um espaço de questionamento sobre o alcance do nosso olhar e, no limite, sobre as possibilidades da pintura mesma ainda representar ou dizer algo sobre o mundo.

As pinturas de Canale não querem “dizer” nada a respeito do que existe à nossa volta, ao mesmo tempo em que não dá as costas para o contexto em que vive. Nem o pouso na cartilha moderna que dava as costas para a vida, nem uma tematização que abdica da forma para apenas ilustrar algo. Sua pinturas querem edificar na carne da linguagem pictórica as suas narrativas desprovidas tanto de ponto de partida como de chegada, sendo sempre travessia.  

Suas casas são triângulos, as flores são linhas, um chapéu desmancha-se até tornar-se pura massa de cor, o cabelo torna-se círculos e cones. É assim, deixando que um vocabulário prosaico da vida comezinha apareça erigido sob formas abstratas que essas pinturas se infiltram na cesura entre Ser e coisa, entre o que é perene e o que é transitivo. Essa obra escolhe entrelaçar de maneira conflituosa, pois é justamente no curto-circuito que reside a sua potência, o que é do mundo, o que passa, o que é próximo e o que é pura abstração.

As obras de Cristina erigem assim uma sutil subversão que faz uso de procedimentos modernos e de uma fragmentação de natureza contemporânea.


E neste mesmo lance, a artista nos devolve como surpresa o cotidiano mais prosaico, que o olhar embotado pelo hábito torna anêmico. Se a pintura em si já é um desafio no que solicita de parada para contemplação em tempos hiper acelerados, as que vemos hoje em Entre o Ser e as Coisas ainda nos desconcertam por nos lembrar que não é mau que as coisas se encontrem outra vez, e todos os dias, nos mesmos lugares. Mas é preciso “castigar os olhos fitando isso que anda no céu e aceita astuciosamente seu nome de nuvem, sua resposta catalogada na memória.” E nesse olhar fixo para aquilo que parece que já sabemos o que é, que automatizamos e já não mais enxergamos de fato, descobrir uma beleza e uma singularidade insuspeitadas. “Resistir a que o ato delicado de girar a maçaneta, esse ato pelo qual tudo poderia se transformar, possa cumprir-se com a fria eficácia de um reflexo cotidiano.”

As pinturas hoje reunidas se constituem como um espaço de resistência no qual recordamos a chance de voltarmos a olhar o que passa pelos nossos olhos diariamente de soslaio, limpando a poeira deixada pelo hábito. Lembremos: para cada coisa, existe um Ser. A arte tem o poder de doar uma segunda pele para a vida e, no encontro com as obras de Cristina Canale, é justamente essa segunda pele que doa singularidade e sentido para as experiências mais prosaicas que
nos é endereçada. 

DUARTE, Luiza. Exposição individual na Galeria Nara Roesler, São Paulo, 2014

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