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Cristina Canale: O Encontro


Luis Pérez-Oramas | 2021
 

 

Quando deixamos de nos questionar o que a arte pode ser e passamos a nos perguntar quando ela pode ser, quando acontece, descobrimos que ela sempre vem a ser um encontro, em um encontro; e assim que deixamos de nos questionar quando a pintura chegou ao seu fim – dentre suas infinitas mortes –, nós simplesmente percebemos que a pintura continua a existir, como uma “metamorfose por adição”[1], sobrevivendo a si mesma, muitas vezes de maneira antitética, e absorvendo em suas manifestações mais novas suas configurações seminais, como uma entidade híbrida, “larval” e incessante.

 

Toda vez que isso acontece, como em qualquer forma de arte, acontece como em um encontro. Uma pintura – uma obra de arte visual – é sempre um encontro, existe como um encontro: encontro espectorial, encontro escópico, encontro de olhares. [1] 

 

É portanto extremamente importante compreender a frontalidade da pintura, pintura como agência frontal de visualidade: o fato de que em suas incontáveis manifestações, da pintura antiga e rupestre até a mais recente, incluindo quando o efeito da pintura ultrapassa suas convenções e passa a existir em formas artísticas que já não são pintura, a dimensão de  seu poder facial se revela: é o rosto da superfície pictórica, a facialidade da pintura, pintura como rosto que nos olha, até mesmo quando ali não existem mais rostos nem figuras perceptíveis.

 

Esta facialidade da pintura nunca foi mais potente do que em obras onde há pouco mais que uma superfície obtusa de pigmentos, como no famoso Black Square [Quadrado negro sobre fundo branco] de Malevich. É precisamente alí que se torna possível argumentar que – enterrada em pigmentos – está a face mais frontal de nossa cultura: o icônico Mandylion, o rosto frontal do Vera Icon [2], a face de Cristo, assunto que o próprio autor indicou de maneira elíptica na forma como apresentou a obra pela primeira vez, instalada no canto superior de um cômodo, espaço sagrado onde os antigos ortodoxos russos costumavam posicionar seus ícones.

 

A produção mais recente de Cristina Canale parece questionar essa dimensão facial, essa agência frontal da pintura, como se desenvolvesse um sistema, um tratado de rostos: são retratos, amiúde frontais, e também muitas vezes desprovidos de detalhes expressivos, puras faces que nos olham, como metonímias figurais da própria pintura.

 

A soberania da retratística na arte ocidental não se reduz ao gênero do retrato. Pode-se afirmar que a soberania do retrato na arte ocidental abrange toda a esfera das imagens, como se todas elas fossem, potencialmente, retratos de alguém ou de algo, assunto que as técnicas fotográficas e de imagem digital levaram ao paroxismo. Frente ao arrebatamento por essas imagens efêmeras que caracteriza nosso mundo contemporâneo, a pintura de Canale transmite um olhar lento, convocando-nos a um encontro repetido e sem pressa com seus rostos sem face, com seus perfis, e com a densidade frontal da matéria cromática onde tomam forma. 

 

Na Roma antiga, Imago era o nome dado ao retrato funerário, à efígie de alguém ausente. O fato de, em nossa linguagem, essa palavra ter se tornado o denominador absoluto de todas as imagens não deixa de ser intrigante. Através de seus estudos sobre iconografia cristã, Hans Belting tem nos lembrado que os gregos empregavam a palavra prosôpon tanto para máscara e rosto, termos relacionados ao teatro. Esta etimologia e suas raízes teatrais desapareceram em Roma. Prosôpon era, então, aquilo que olhamos, o objeto de nosso olhar, aquilo que temos diante de nossos olhos, que nos olha de volta. O prosôpon se oferece ao olhar, diferente da máscara que os romanos chamavam persona, que cobria ou dissimulava o rosto do ator. A imago funerária romana era a marca – o molde – do rosto de alguém que havia morrido, sua facie, sua face. Era, portanto, uma face sem expressão individual, como em alguns retratos de personagens femininos de Cristina Canale: facies sem vultus, sem expressão facial.

 

A ausência voluntária de vultus – isto é, de expressividade facial - nos retratos de Cristina Canale é compensada pelo complexo aparato cromático da pintura, como se a arquitetura da forma e da cor que lhes confere presença na superfície da pintura pudesse complementar sua falta de expressão. Prodigiosamente expressivos apesar de suas faces sem rosto, estes retratos permanecem um enigma que nos questiona através da frontalidade da pintura. É pintura que nos olha.

 

Entre os trabalhos mais recentes de Canale estão alguns retratos particularmente significativos, na medida em que apresentam um surpreendente – e novo – dinamismo lateral. Rostos representados em perfil emergem e marcam, com sua ação e seu efeito, a lateralidade do campo pictórico: um sopro, a fumaça de um cigarro, um olhar que não encontra o nosso, mas que, no entanto, o convoca.

 

O fato de que os rostos nos retratos não nos interpelam frontalmente não atenua de forma alguma a força com que essas obras interrogam a facialidade da pintura, pelo contrário: eles definem uma nova dimensão para o encontro, ativando particularmente as bordas, sua ressonância lateral, sua potência para determinar o espaço para além de seus limites materiais.

 

Este dinamismo lateral, obliquo, explosivo, vital, energético, parece ser uma nova característica do repertório de Cristina Canale. A obra O Encontro, uma representação de dois personagens em perfil, frente a frente, colocados no contexto atmosférico de uma rica galáxia cromática de formas indefinidas – híbridas, sedutoras, quentes, incertas, onde uma figura fetal parece surgir – poderia ser um emblema desses novos trabalhos. Ela sintetiza o encontro sensorial através do qual o mundo se abre para nós, para o engendramento [4]  do visível e do vivo, onde nasce o face-a-face da pintura, na medida em que sua frontalidade interpela nosso olhar. As novas e amplas obras de Cristina Canale acolhem essa imensa ambição cósmica com uma plenitude sem precedentes.  

 

[1] Vdr. Emanuele Coccia: Metamorphoses [Paris: Rivages, 2020], p.80

[2] Vdr. Hans Belting: Le masque et la personne du Christ in La vraie image [Paris: Gallimard, 2007], p. 71 sqs.

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