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Jacopo Crivelli Visconti | 2011

 

 

 

O casamento [1] é no campo, o noivo não chega. A noiva, de braços cruzados, olha para longe, imóvel, enquanto o vento levanta seu véu e seu vestido, deixando à vista tornozelos firmes e sapatos pretos. Ao lado dela, outra mulher a acompanha na espera, no que parece ser um vestido florido, mais curto que o da noiva, e menos sensível aos caprichos do vento, tanto que quase não se mexe, apenas se levanta fugazmente, e volta a cair. Essa rigidez do vestido sugere um tecido grosso, áspero e acabado sem excessivos requintes. É um vestido de festa, mas de muitas festas, um dos poucos no armário da irmã da noiva (deve ser a irmã: os mesmos cabelos pretos, os mesmos tornozelos fortes e bem plantados no chão, a mesma cor de pele). Perto delas, mas longe o suficiente para deixar claro para todos que não se sente parte do grupo, a filha pré-adolescente da irmã da noiva (nesse caso, são os chifres a sugerir uma relação) observa-as, ou talvez olhe apenas na direção em que elas por acaso se encontram, mas para bem longe, muito além delas. Também é possível que, apesar de tudo, não sejam mesmo irmãs, apenas vizinhas [2]. Moram perto dali, atrás do muro bege, em casas geminadas. Vieram até aqui para entender o que estava acontecendo: a menina, que agora se acalmou e fica olhando para o chão, chorava, não conseguia se explicar, as duas saíram de casa apressadas, sem pegar casaco, e agora tentam proteger-se do frio cruzando os braços, mas não está adiantando muito, e elas continuam sem entender. A menina vez por outra murmura algo quase incompreensível, fragmentos de uma história, ou de um sonho: uma mexicana que segurava uma flor vermelha (uma gérbera, será que ela disse mesmo gérbera?), a mão de um menino que, emergindo de algum lugar, roubava um balão laranja. Talvez fosse o balão da menina, e por isso ela chorava. Ou talvez fosse medo mesmo, medo dessas vozes [3] que ela não para de ouvir…

 

As pinturas recentes de Cristina Canale, se com recente entendemos as produzidas ao longo da última década, são cheias de histórias assim, que começam e não terminam, que criam atmosferas, colocam as premissas, introduzem os personagens e param. A presença recorrente de manchas de cor que, assim como podem vir a representar elementos reconhecíveis também podem ficar amorfas, e alguns toques surreais, bem exemplificados pelos chifres das que imaginamos ser a irmã da noiva e sua filha, transportam-nos para um universo onírico, fabuloso. As histórias contadas por essas telas não estão necessariamente comprometidas com a realidade do jeito que a conhecemos, poderiam derreter-se a qualquer momento, dissolver-se em algo irreconhecível. Essa dissolução latente é a ameaça que paira, como uma morte anunciada, sobre todos os personagens das histórias de Cristina Canale. A crítica tem analisado esse embate entre a figuração e a abstração nas suas pinturas, geralmente, de um ponto de vista formal e, mais especificamente, cromático, como se tudo se reduzisse a uma questão pictórica, quase autorreferencial. Essa leitura, mesmo que indiretamente, situa esses trabalhos na linhagem pictórica modernista, que entendia o quadro como um espaço autossuficiente, em que as cores e as formas remetem apenas a si mesmas, sem nenhum desejo de reproduzir algo externo, consequentemente tendendo a enfatizar e escancarar as caraterísticas fundamentais da pintura (bidimensionalidade, matéria da tinta etc.), que em outras épocas eram vistas como obstáculos a ser superados, mimetizando-os até fazê-los desaparecer. E, de fato, as telas de Cristina Canale são abertamente “pinturas”, no sentido que não aspiram a ser confundidas com janelas abertas, por onde o espectador estaria observando o mesmo mundo que o rodeia, para recorrer à célebre metáfora de Leon Battista Alberti. Isto é, sua figuração não tem nenhuma ambição mimética.

 

Por outro lado, é necessário ir além de uma leitura apenas formalista: nas telas de Cristina Canale existe, colocada com a mesma clareza e mantida num estado de suspensão e indefinição análogo ao que caracteriza a luta entre abstração e figuração, um impasse da narrativa, que oscila entre a construção de histórias reconhecíveis e quase convencionais em sua aparente linearidade (um casamento, uma visita ao zoológico com a neta, uma aula de violino etc.) e o abismo de um mergulho sem volta na afasia da pura cor; entre premissas claras, principalmente no que diz respeito à maneira como as cenas e os personagens são construídos, e a interrupção abrupta das histórias que a artista, consciente e até programaticamente, escolhe não desenvolver para além dessas premissas. Se essa correspondência entre forma e conteúdo é evidentemente coerente, ela instaura também um curto-circuito crítico, no sentido de que, se, como vimos, as premissas pictóricas poderiam ser consideradas ainda inscritas na tradição modernista, a narrativa fragmentada, onírica e, em última instância, indecifrável coloca-nos em cheio no âmbito da pós-modernidade. Apesar de acadêmica, a contraposição entre os aspectos “modernistas” e “pós-modernistas” desses trabalhos tem o mérito de evidenciar a complexidade de uma obra que está longe de encerrar-se em questões formais ou técnicas. De fato, a análise do caráter truncado das histórias, e a maneira como, apesar disso, a obra de Cristina Canale não se furta a seguir contando algo, permite imaginar que o estímulo para a criação surja, para ela, exatamente do desejo de contar histórias. Dito de outra forma, cabe imaginar que as formas à beira da dissolução, o inacabado que distingue essas telas, constituam o recurso encontrado pela artista para contar suas histórias da maneira que lhe parece mais adequada (ou, de acordo com os mais fervorosos teóricos da pós-modernidade, a única maneira ainda possível). Se aceitarmos essa interpretação, eis que o estilo tão pessoal dessas pinturas deixa de ser apenas um capricho, uma solução meramente estética, para tornar-se uma escolha quase ontológica, uma declaração de poética. Os personagens que a artista nos apresenta não emergiram do magma de cor apenas para preencher as telas ou para transformar uma vocação abstracionista em figuração: pelo contrário, cada elemento representado tem uma função a cumprir, contribuindo para o equilíbrio do conjunto. O cerne dessas pinturas não deve ser buscado (ou não exclusivamente) no embate entre figuração e abstração, mas sim nas histórias que contam e, mais ainda, na maneira como elas são contadas.

 

 

 

VISCONTI, Jacopo Crivelli. Cat. expo individual Galeria Nara Roesler,
São Paulo, 2011

 

[1] Casamento, 2010-2011, 140 x 165 cm, óleo sobre tela.

[2] Vizinhas, 2011, 180 x 200 cm, óleo sobre tela.

[3] Vozes, 2011, 140 x 180 cm, óleo sobre tela.

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