Who’s that girl? [1]
Galciane Neves | 2023
O seminal texto “Por que não houve grandes mulheres artistas?”[2], de autoria da professora, escritora e historiadora da arte Linda Nochlin, joga uma pergunta-bomba. Ao ler esse texto, a vontade de muitas de nós que trabalhamos no campo da arte é de nos tornamos especialistas, perscrutarmos as narrativas e os métodos historiográficos e combatê-los até que agonizem. Sim, mordemos sua “isca”, Linda. Há ainda perigo nessa história única, como nos diz Chimamanda Ngozi Adichie (2019)[3], e em como ela passeia por aí como verdade. Linda Nochlin nos indaga sobre os exercícios profissionais de mulheres no sistema da arte, sobre os ditames de uma produção artística categorizada como feminina, sobre o status de artistas mulheres, e nos faz avistar algumas ferramentas para lidarmos as tantas “mulheridades” na arte. Suas palavras revelam o anonimato, as subjugações, a falta de crédito que nos cerceiam. Apontam para as desigualdades entre gêneros nos ambientes de trabalho; para as violências que enfrentamos cotidianamente por habitarmos um mundo em que equidade de gênero ainda parece um sonho inalcançável; para nossas pautas, que pertencem a uma luta que não deveria ser apenas de, com e para mulheres. Infelizmente, ainda almejamos o óbvio: práticas política, social e culturalmente reconhecidas e em vigor que nos garantam condições de vivermos com liberdade.
A pergunta redigida por Linda, que ecoa desde antes da década de 1970 e cujas atualizações a tornam cada vez mais difícil e dolorosa de ser respondida, aporta aqui para propor um modo de reflexão acerca da linguagem de uma artista mulher e que pinta retratos de mulheres, entre outros assuntos. Se Nochlin questiona a metodologia de construção historiográfica que se baseia, sobretudo, nos feitos de um personagem absoluto – o gênio criador –, talvez seja possível pensarmos e nos questionarmos acerca das especificidades de pesquisa, produção e reflexão de mulheres artistas. É importante ressaltar que não está embutida nessa perspectiva de pensamento a categorização de um estilo feminino, que se vale de naturezas expressivas ditas femininas ou de adjetivações ralas e estigmatizadoras (delicada, sensível, “lá vem textão” e outras tantas expressões sexistas que nos cansam). Mas, antes, para adentrar a experiência de produção poética de mulheres, e de Cristina Canale, singularmente, pretendemos propor perguntas que se orientam a partir de seus gestos de criação e de sua obra.
Posto isso, elencamos aqui outras duas perguntas que se filiam e se enraízam nas dinâmicas discursivas apresentadas no texto de Nochlin. Quem é esta que pinta? E quem ela pinta? Até poderíamos pensar essas perguntas como espelhos, com debates que se irradiam entre si. Cairíamos, talvez, no abismo da autoexpressão, como dizem muitos, onde todos os critérios artísticos são julgados como escolhas única e exclusivamente provenientes de uma experiência de mundo como mulher, com seus marcadores sociais específicos e até criticados como ensimesmados? Seria um problema? Por um lado, sim. Por outros tantos, não. Mas isso não parece se aplicar de modo eficiente ao trabalho de Canale e ao que pretendemos aqui discutir.
Queremos lidar, sim, com a complexidade com a qual se constitui o fazer artístico, com as particularidades dos gestos, com as muitas possibilidades de fabulação pictórica, com as narrativas diversas que brotam da pintura e desse universo que habita uma mulher em processo criativo, com os olhares que a artista lança sobre as coisas e, assim, ousa modos diversos de ver e pintar o que vê, deixando-se povoar por tantas referências e diálogos visuais. Voltando a uma das perguntas: quem é Cristina Canale? A artista inicia seus questionamentos na pintura mirando a arte japonesa, o trabalho de Jackson Pollock e propondo alternativas ao modelo clássico de produção de paisagem. Assim, ela adensa a profundidade em suas pinturas por meio de uma construção por superposição e sobreposição de elementos. Sua paisagem não se ressente da linha de horizonte. Segundo Fernando Cocchiarale, o fato de ter nascido e vivido no Rio de Janeiro a informou bastante e contribuiu com o modo de olhar o mundo. Suas pinturas, segundo o crítico, “absorveram as curvas (a baía, praias e lagoas), o relevo (morros e pedras enormes) e, sobretudo, a espacialidade (sistema no qual esses traços ou formas se organizam)”[4].
O contexto social, cultural e artístico realmente sempre adentrou com protagonismo os processos da artista. Quando passou a morar na Alemanha, Canale se concentrou, então, num processamento da matéria pictórica mais diluída e fluida, acercando-se dos objetos que tratava e do ambiente em questão, e consumindo-os mais visceralmente. Nos anos 2000, é possível perceber uma outra transformação importante em seu percurso. Cristina foi se colocando diante de fortuitos embates (que ela própria não pretende solucionar) entre a figuração e a abstração, e entre a narrativa e o tempo aberto ao não acontecimento. Tais embates seguem se atualizando em seu trabalho, de muitas maneiras, como linguagem. Montanhas, cachoeiras, matas, mar, flores, frutos, em detalhes agigantados e em vistas aéreas ou distanciadas, em recortes improváveis, acontecem com a cor entre manchas, respingos, escorridos. A cor é fundamento dessas paisagens.
Aos poucos, essas paisagens começaram a ser habitadas por pessoas e bichos. Não há, ao que parece, uma delimitação entre personagens e fundo. Mas o desejo pela cor fazendo espaços-corpos, espaços-paisagens, enquanto esses se nutrem entre si, quando em cena. E aí, adentramos essas atmosferas, tateando, como quem olha também com as pontas dos dedos. Amorfas ou como índices de presenças, as manchas de cor desenham folhas, bocas, cachorros, azulejos, vestidos, estampas de roupas, quinas, pisos. Ou seriam florestas, mesas, portas, almofadas ou, ainda, tudo ao mesmo tempo? Essa ambivalência nas imagens pictóricas de Canale – que se coloca não como uma indecisão na construção de pormenores, mas, antes, para que a imagem se afete pelo olhar e se abra ao público – pode ser compreendida como uma das chaves de seu trabalho. A artista despede-se da relação de complementariedade de significação entre forma e conteúdo. A menina acaricia o cão ou é sua mão que se funde ao pelo do animal? Para onde se direcionam os olhos da personagem de vestido estampado? Quem espreita o cão valente ao fundo do enquadramento? Ou se trata de uma textura de parede que se confunde com os quadros pintados em sua tela? Corpo, espaço, objetos: uma paisagem com elementos em interação metamórfica e, ao mesmo tempo, personagens que são lugares.
Quando se dedica ao que reconhecemos na história da arte como retrato, Cristina Canale se vale de procedimentos análogos aos de quando pensa a paisagem. Não se trata, portanto, de uma migração brusca de um gênero de pintura para outro ou de diferenciar procedimentos nesses distintos fazeres. Canale traduz seus procedimentos, criando jogos de linguagem que traçam câmbios e transmutações entre zonas híbridas da pintura que se deixam esfregar e se contaminar umas às outras: a paisagem que acontece como corpo, o corpo que se integra à paisagem, um retrato que encena um rosto como campos de cor que se assemelham a paisagens, um rosto que acontece com topografias, relevos, curvas.
Nesses retratos, Canale desenha e demarca cartografias. Ou seja, o rosto, partes do corpo da personagem em cena, como mãos, cabelos, pescoço, tronco, têm uma eloquência cromática e, por isso, podem ser percebidos como territórios, uma espécie de geografia aérea ou em perspectiva, ou como elementos de paisagem – montanhas, rios, vales, fendas, mata. Rostos e suas presenças são campos de cor, em sua maioria, sem contornos, sem linhas, mas tendo a cor como formulação. Seus dimensionamentos estão quase sempre maiores em escala. Um seio acobertado por uma mão pode ser também como um lago que ladeia um terreno vermelho? Ou será uma montanha vista de cabeça para baixo, derramando terra sobre um lago vermelho? Canale mescla recursos de estar diante do desejo de pintar paisagem e recursos diante do desejo de pintar um rosto/corpo na paisagem e como paisagem. Ela experimenta encarar o corpo na tela como território. E sua existência torna-se tal como os lugares se dão, como lócus de nossas experiências. Nessa situação poética, Canale faz coincidir corpo e lugar. Suas operações de linguagem, portanto, avistam, engajam-se e elaboram um corpo, um rosto pelo viés da paisagem.
Maria é uma das obras em que Canale solta o gesto para esse acontecimento corpo/paisagem. No retrato, sobre um fundo azul em dégradé, a mancha enegrecida é o cabelo da personagem, mas se nos dedicarmos a um exercício de imaginação, ela pode ser vista como uma ilha, coberta por uma nuvem. A nuvem, ao mesmo tempo, sobrevoa a ilha e cobre os olhos da personagem. Ou seria o dégradé uma sugestão de mar adentro? E a forma enegrecida, um corte na paisagem? Em A árvore e o espermatozoide (2022) o olhar perde-se, um tanto aflito pelo exagero na composição cromática. Um rosto/terra/chão recebe a árvore, que ali prende suas raízes. É esse chão/rosto que também se deixa infiltrar por uma gota vermelha. Não há limites entre paisagem e rosto. Em Teach (2023), o procedimento é outro. Um rosto sem olhos, sem boca, sem nariz parece nos encarar. Sua extensão é toda preenchida com bolinhas, sugerindo uma espécie de cartografia, como se cada tom de amarelo representasse um lugar, uma cidade, uma delimitação. Entre elas, um círculo rosa se destaca, e dele sai um balão, como os das histórias em quadrinhos. Ao que nos indica Canale, esses elementos são caminhos para entrar ou sair da pintura, ou respiros. Sim, tudo é corpo e também paisagem. Não ponderemos em nossos devaneios: ou esses elementos seriam rotas de fuga ou pequenas estradinhas de penetração no corpo/lugar? Talvez possamos pensar: os retratos de Canale são enquadramentos de paisagem com escapes e portais de entrada? E, vejam: mãos, brincos e sobrancelhas também cumprem esses papéis. Ou seriam relevos, rasgos em montanhas, pequenas crateras?
Avistar essas obras nos revela o tratamento da paisagem ao alcance do corpo, ou seja, uma paisagem que se rege na escala do corpo. E, simultaneamente, um corpo cuja potência está em se comportar como lugar e se deixar avistar como paisagem. Assim, sob o ponto de vista do processo de produção e sob o ponto de vista da experiência de percepção, essas obras em questão nos fazem lembrar de uma experiência de caminhada narrada por Rebecca Solnit, em que a escritora mistura, talvez tomada por uma sensação diante do sublime, as sensações de seu corpo e a descrição de uma paisagem:
Aquele círculo tornou-se um mundo cujas regras regiam minha vida e eu entendi a moral dos labirintos: algumas vezes, é preciso dar as costas ao objetivo para chegar lá; outras vezes nos vemos mais distantes quando estamos mais próximos; em outras, ainda, o caminho mais longo é o único a seguir. Depois daquela caminhada atenta e cabisbaixa, a tranquilidade da chegada foi comovente ao extremo. Ergui os olhos, por fim, e vi que nuvens brancas feito garras e penas saracoteavam pelo céu azul, dirigindo-se para o leste. Foi de tirar o fôlego perceber que, no labirinto, era possível transmitir espacialmente metáforas e significados. Que descobrir que chegamos subitamente quando nos vemos mais distantes do destino é uma verdade muito batida se colocada em palavras, mas algo profundo quando feito com os pés.[5]
Pois que bela associação: é preciso, quem sabe, também despedir-se das palavras para estar com o corpo em estado de retrato e mirá-lo em sua espacialidade, avistá-lo como território e, assim, fazê-lo também lugar, morada, paisagem. Quando tratamos de linguagem, a relação dialógica entre corpo e paisagem em Canale torna ambos significantes no espaço pictórico, ou seja, torna ambos matérias visuais que seduzem os olhares, que convidam ao pensar, a um processo de elaborar corpo e paisagem, corpo como paisagem, paisagem como corpo. E seus sentidos operam no fluxo entre essas matérias sem se estabilizar, sem necessitar de uma definição estanque. Assim, isso nos deixa vagando entre essas matérias, ora corpo, ora paisagem. A tudo isso, Merleau-Ponty pode apresentar uma chave potente de leitura acerca dos trabalhos de Cristina Canale. Ele elabora uma proposição para o corpo que pretende pensar a pintura e a visão, e como a relação entre essas se dá fenomenologicamente:
Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível. Mas também é verdade que a visão depende do movimento. Só se vê o que se olha. Que seria a visão sem nenhum movimento dos olhos, e como esse movimento não confundiria as coisas se ele próprio fosse reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a visão não se antecipasse nele? (…)
O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no que vê então o “o outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele se toca vidente, é visível e sensível para si mesmo.[6]
A segunda pergunta (quem ela pinta?) foi aqui, aos poucos, se misturando à discussão sobre a indissociabilidade entre corpo e paisagem que Canale emprega em muitos de seus retratos. Mas uma outra camada a se acrescentar a essa pergunta vem de uma anotação achada em um dos cadernos da artista. Três círculos em uma página são referendados como reticências. E essa pontuação sugeriu a licença poética que traçamos logo a seguir, sendo também bastante inspirada em uma personagem de Canale, que não sabemos se foi ou será retratada: uma mulher de tranças e olhar assustador. Raios vermelhos saem dos seus olhos, que se arregalam. Os raios atravessam outros dois rostos. “gunpowder gelatine / dynamite with a laser beam” [gelatina de pólvora, dinamite com raio laser]. Essas palavras orbitam seu rosto na página do caderno. E a pergunta se refaz: quem é essa garota? Abaixo de sua face, numa zona triangular verde-flúor, que pode ser sua roupa, está o que pode ser a resposta: “She’s a killer queen” [Ela é uma rainha assassina]. Como uma provocação, a frase descreve a personagem que não deixa muitos rastros, apenas raios vermelhos. É a partir desse rosto que seguimos caminhando e fabulando sua história, a história de um corpo-paisagem.
Notas:
[1] Título da canção de Madonna, que integra a trilha sonora do filme homônimo (lançado no Brasil como Quem é essa garota?, 1987). A trama retrata a história de Nikki, interpretada por Madonna, que é falsamente acusada de assassinar seu namorado. Depois de cumprir sua pena, ela segue em liberdade condicional e conhece um homem, que tem o dever de garantir que ela pegue o ônibus de volta para a Filadélfia. Nikki o convence a ajudá-la a pegar os responsáveis por sua prisão. Enquanto procuram o fraudador, e depois de viverem muitas aventuras em Nova York, eles se apaixonam. Em um dos trechos da música, que se segue ao refrão-pergunta, Madonna canta: “When you see her, say a prayer and kiss your heart goodbye / She’s trouble, in a word get closer to the fire / Run faster, her laughter burns you up inside”[[Quando você a vir, diga uma prece e dê um beijo de despedida ao seu coração / Ela é encrenca, em uma palavra aproxima-se do fogo / Vá mais rápido, sua gargalhada te incendeia (tradução nossa)]. É dessa garota, que pode ser tantas, encarnada por tantas de nós, com outras tantas histórias de vida, que queremos falar, quando olhamos para as personagens de Cristina Canale.
[2] Texto publicado originalmente na revista estadunidense ArtNews, em 1971, traduzido para o português por Juliana Vacaro e editado por Júlia Ayerbe, em 2016 (Edições Aurora / Publication Studio SP).
[3] Chimamanda Ngozi Adichie, O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[4] Fernando Cocchiarale, “Entre a ordem e o ícone”, In: Cristina Canale. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2011, p. 18.
[5] Rebecca Solnit, A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2016, p. 121.
[6] Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 18-19.