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Paisagem: Tradição e contemporaneidade na pintura de Cristina Canale

Fernando Cocchiarale | 1999

Esta é uma mostra resumo da obra de Cristina Canale. Se a pequena quantidade de trabalhos expostos não permite o mapeamento, passo à passo, do que produziu nos últimos dez anos, a concentração de algumas de suas pinturas mais representativas, torna possível a apreensão conjunta dos elementos básicos da poética dessa artista.

 

Lançada, em 1984, pela mostra Como vai você , Geração 80?, Cristina fazia parte do grupo de jovens alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Laje que passaram a integrar, após este evento, um dos núcleos mais consistentes e conhecidos da retomada da pintura, no país. Sintonizados, esteticamente, com as questões da arte internacional, embora não fechados em torno de princípios plásticos-formais rigorosos, a maioria desses artistas propunha o retorno à figuração, e manifestava, em graus diversos, o interesse das possibilidades expressivas da matéria pictórica. Dentre os representantes brasileiros da nova pintura, Canale talvez tenha sido um dos que mais se aprofundaram na exploração dessas questões características da arte dos anos 80.

 

Até 1987, o sentido arquetípico dos signos então utilizados por Cristina (cruzes e mandalas), não tinha qualquer compromisso com o tratamento matérico dado às pinturas. Essa desintegração, no entanto, não interessava a artista. Sua vontade de superá-la era maior do que a de buscar, na radicalização do divórcio entre imagem e matéria, a força necessária para impulsionar o desenvolvimento de uma poética consistente. Para Canale, a única solução aceitável residia no esforço de integrá-las em um corpo único de múltiplos sentidos. A partir de então, sua opção por um gênero tradicional da pintura, a paisagem, tornou possível a harmonização do conflito e o início de um profícuo diálogo com a arte, aspectos que emprestaram as suas obras, uma identidade própria.

 

Representação e materialidade raramente aparecem conjugadas na história da pintura. O sucesso da ilusão naturalista exigia uma pincelada de pouca densidade, uniforme, já que o empolamento da tinta enfatizava o plano da tela em detrimento de sua virtual profundidade. Mas o discurso naturalista teve, também, adversários. A emergência do Barroco revogou por dois séculos o uso da pincelada uniforme do renascimento, reabilitada, somente no século XIX, pelo Neoclassicismo e por seus desdobramentos acadêmicos. Em um sentido também divergente do Naturalismo, artistas como Turner (1775-1851) e Monet (1840-1926) não consideravam a pintura como a arte da representação da imagem permanente das coisas, mas sim a da captação e registro do efeito da variação luminosa sobre os objetos. Esboçadas pela luz, representadas por meio de pinceladas de espessuras diversas, suas paisagens possuíam elementos matéricos que posteriormente seriam adotados, de modo análogo, pelos expressionismos.

 

Entretanto, a designação pintura matérica evoca um fenômeno típico de algumas poéticas do abstracionismo informal, da década de 50 – dentre elas as de Jean Dubuffet (1901-1985), Jean Fautrier (1898-1964), e também, em uma outra medida, Georges Mathieu (1921), Phillip Guston (1913-1980), Clifford Still (1904-1980), etc.,- para as quais a matéria pictórica era portadora de uma significação auto-referente, restrita às suas qualidades plástico-visuais.

 

Quando, nos anos 70, a Arte Conceitual, a Body Art e a Land Art colocaram, na ordem do dia, a desmaterialização da arte, o predomínio das imagens-técnicas – fotografia, cinema, vídeo -, tornou-se quase absoluto, pois eram as únicas capazes de registrar a efemeridade dessas manifestações. nos anos 80, as artes plásticas, em uma espécie de nostalgia do objeto estético, reavaliaram as imagens pictóricas, fazendo-as, novamente, uma tendência mundial da arte. Embora pintores como os da Transvanguarda italiana, e muitos outros artistas, de vários países, tenham adotado um repertório imagético visivelmente conservador, que via “todas as linguagens do passado como reversíveis” (A. B. Oliva), o tom estético contemporâneo foi dado pelo Neo-Expressionismo alemão. A novidade estava na combinação do legado matérico do Informalismo, com uma nova modalidade icônica do Expressionismo: mais simbólica e, talvez, mais histórica, só que vista pela subjetividade fragmentada do artisata pós-moderno.

 

Embora partilhasse com o Neo-Expressionismo o interesse pela pintura matérica, Cristina Canale preferiu deixar de lado as influências de seus colegas de geração e buscar, na história da arte, as referências para a renovação de seu trabalho. Ao concentrar-se na pintura de paisagens, a artista não só delimitou um campo de ação, como passou a dialogar com um vasto acervo teórico, técnico e icônico, produzido ao longo de séculos, do qual obteve respostas para muitas de suas indagações . 

 

Nesse sentido, encontrou na arte japonesa e, posteriormente, na pintura de Jackson Pollock, uma concepção espacial e um padrão de ocupação do plano pictórico, alternativos ao modelo clássico de paisagem. Como na tradição oriental, Cristina passou a ocupar o quadro da base até o topo, sugerindo a profundidade de um modo diferente daquele da perspectiva, que dependia da linha do horizonte. Entretanto, embora o tratamento matérico igualasse forma e fundo, essa antiga distinção hierárquica da pintura clássica persistia visualmente: os elementos de definição da paisagem, por seu carácter icônico, seguiam destacados do fundo matérico. A idéia da all over painting, de Pollock, combinada com uma difusa influência das Ninféias de Monet, permitiu a canale mobilizar toda a supewrfície da tela, não só por meio da matéria, como pela distribuição uniforme das imagens. A influência desses artistas marcou seu trabalho de 1990 até 1993, quando viajou para estudar na Alemanha.

 

Nas pinturas produzidas entre 1987 e sua partida do Brasil, as paisagens de Cristina Canale parecem emanar da espessa camada pictórica das telas. No entanto, não podemos considerá-las como meros pretextos para uma pintura matérica. A função plástica do tratamento pictórico soma-se, na obra da pintora, à uma função simbólica. Em seus quadros, a matéria pigmentar transforma-se, por analogia, na representação da matéria luminosa que modela as imagens. Luzes e sombras desempenham, no mundo visível, uma função correlata à do pigmento no universo do quadro: ambos são condições essenciais da visibilidade.

 

O período que passou na Alemanha foi determinante para a transformação radical do trabalho de Cristina. A simples troca da tela pelo papel, levou-a a produzir obras de pequeno formatos, a abandonar o tratamento matérico da imagem e, finalmente, a descobrir a potência expressiva da linha. Se os elementos da paisagem eram antes modelados e iluminados por meio da pasta pictórica, sua definição, agora, é feita pela superposição de transparências e pela combinação de linha e mancha.Em lugar das composições “voluminosas” da década passada, os quadros de hoje são compostos por planos cromáticos que simultaneamente iluminam e emprestam profundidade às paisagens, sem a representação explícita, de luz e sombra, das pinturas de outrora.

 

O abandono de um repertório que a situava no contexto da Geração 80 é significativo: doravante, as razões das mudanças na obra dessa artista devem ser procuradas, antes, na maturação de seu processo criativo, do que na eventual influência de novas tendências estéticas. Assim como havia se afastado da tela para reencontrá-la adiante em novas bases, sua ausência do país, de modo análogo, talvez seje responsável pelo abrasileiramento icônico e cromático-luminoso de seus quadros mais recentes. Cristina Canale, uma vez mais, confirma a importância da contribuição de seu trabalho para a renovação da pintura brasileira.

 

 

COCCHIARALE, Fernando. Cat. exposição individual no Palácio das Artes, Belo Horizonte, 1999; Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2000.

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