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A casa e o sopro

 


Daniela Labra | 2024

Tupã pegou um pouco de barro, amassou e moldou o primeiro Homem. Soprou-lhe o nariz e lhe deu vida. O Homem cresceu e ficou grande como Tupã, mas não falava. O grande deus soprou em sua boca e começou a falar. Então, Tupã soprou na orelha esquerda a inteligência e na orelha direita a sabedoria. (…) Por fim, Tupã deu ao Homem o poder de escolher entre criar e destruir. Terminada a criação, Tupã voltou para o céu montado em seu redemoinho.​ [1]




A força do vento-sopro, em muitas culturas, é energia universal que devasta paisagens e traz o caos, mas também serve de alento, regeneração, fonte de som ou agente polinizador disseminando vida. O sopro como vento ou ato é uma via de transmutação da matéria e portanto da forma – questão importante para Cristina Canale, uma mestra da pintura que transmuta cores em formas sólidas.

Carioca estabelecida na Alemanha desde 1993, participou da icônica coletiva Como vai você Geração 80? em 1984, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Naquele período, quando a tendência artística era o neoexpressionismo abstrato, Cristina interessava-se por figuras e paisagens. Ela, contudo, foi além do figurativismo literal, explorando o vocabulário pictórico em texturas rasas, formas blocadas, campos cromáticos, nuances, sutilezas e contrastes entre porções de áreas de tinta densas-sólidas e outras líquidas-transparentes.

Hoje, 40 anos após a exposição que lançou nomes importantes para a historiografia da arte brasileira contemporânea, Cristina Canale é uma pintora madura, dona de uma linguagem visual própria e singular. O seu universo de figuras de contornos difusos e fomas ambíguas, ora sensuais e exuberantes, remetem em diferentes momentos às obras de Marlene Dumas, Miriam Cahn ou Ethel Adnan, artistas de excelência com quem potencialmente compartilha a sabedoria do léxico da pintura na contemporaneidade.

A Casa e o Sopro é primeira exposição institucional de Cristina Canale em Porto Alegre reunindo pinturas a óleo sobre tela, e desenhos em aquarela e técnica mista sobre papel. Em um conjunto de vinte e duas obras criadas dentro de um arco temporal de três décadas, as composições apresentam elementos orgânicos, antropomorfos ou botânicos ambíguos. A obra mais antiga deste grupo é a tela Branco de Medo, de 1992, feita para uma mostra coletiva em uma galeria de São Paulo, e pouco exibida desde então. A paleta de cor baixa e figuras de limites pouco definidos deste trabalho pertencem a uma fase de investigação em modulação cromática, e fazem lembrar as paisagens sem céu sobre blocos de cor do impressionista Claude Monet (1840-1926). Embora inicial, nota-se nesta pintura alguns antecedentes formais, de composição e texturas, presentes em outras mais recentes como a A casa e os sonhos, de 2021 e Sopro, de 2023.

Especialmente nas pinturas, percebemos neste grupo de trabalhos a marca autoral de Cristina Canale: composições de cores vibrantes adensadas em zonas de pigmento que são como ilhas de matéria. São massas cromáticas que formam figuras híbridas as quais se transmutam em flores, folhas, gotas, nuvens, pernas, mãos, rostos… ou o que a imaginação quiser - as composições da artista não se fecham em um só motivo. Ao contrário, ela aproveita a maleabilidade da tinta a óleo para compor múltiplos significantes instáveis. Sua pincelada preenche, cobre e rasura campos cromáticos atravessados por diversos elementos justapostos, criando cenas com fragmentos de corpos ou objetos cotidianos em situações por vezes indefinidas e cenários oníricos-lisérgicos.

O título A Casa e o Sopro remete à presença de elementos “sólidos” ou “gasosos”, como define a artista, que são contrastantes. Ele afirma a relação entre opacidade e transparência representada nos elementos da casa como signo de solidez e abrigo, em contraponto à imaterialidade do ar, etéreo e vital, que nos preenche e rodeia. A menção ao sopro lembra, ainda, mitologias de diferentes culturas cujas divindades sopraram formas humanóides esculpidas em barro e lhe deram vida, criando, assim, o ser humano. Um ciclo de transformação da matéria que se encontra nas pinturas de Cristina quando a tinta a óleo, usada como uma substância plástica moldável, se torna volume e ritmo.

A pintura contemporânea atual muitas vezes perde a poética para a literalidade de figuracões frágeis, porta-vozes de pautas artísticas supostamente defensoras de verdades. Contudo, permanecendo na contramão de tendências que correm o risco de ficarem datadas, as composições de Cristina Canale são compromisso com a pesquisa da linguagem pictórica que oferece respiro, vibração e sobretudo enigmas.

 

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[1] O Sopro de Tupã. In: CLARO, Regina. Encontros de história: do arco-íris à lua, do Brasil à África. São Paulo: Cereja, 2014 p. 10
 

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