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No Rastro da Pintura

Daniela Bousso | 2003

Cristina Canale é uma artista triunfante no contexto da pintura brasileira. Descende de uma linhagem de pintores – a geração 80 – que aparentemente teriam vindo para ficar, mas, anos depois, viram suas produções pulverizadas e datadas. Não fossem o conhecimento e a densidade, atributos intrínsecos à sua obra, certamente a artista teria sido apanhada pela obsolescência que estão enfrentando muitos pintores que emergiram da explosão da pintura informada pelo eixo Milão/Berlim dos anos 80.

 

A missão do pintor tornou-se um enorme desafio hoje, depois que a Transvanguarda tornou-se um arremedo Pós-Moderno. Somado a isso, a arte dos anos 90 voltou-se para uma espécie de inteligência artificial: representação ou imagem? Real ou virtual?

 

Fato é que a tela pintada tornou-se pura fixidez, ao passo que a imagem proveniente dos meios tecnológicos tornou-se fluida A subjetividade da pintura teve seu prolongamento nas representações da fotografia e do vídeo. Mas o que permanece como um fio condutor na trama da história é a busca da representação, antiga na vida do homem. De Lascaux aos Egípcios passando pela antiguidade clássica; da extensão desses percursos à Renascença assistimos ao aperfeiçoamento dos sistemas miméticos via aprofundamento da perspectiva.

 

O aparecimento da fotografia no final do séc. XIX revolucionou o entendimento tradicional da representação mas, mesmo assim, isso não significa a superação da pintura como se ela fosse prescindível. A pulsão do artista é livre e sua legitimidade deve ser garantida, independentemente das regras do jogo de cada momento ou de modismos. A arte contemporânea incorporou e integrou a diversidade, seja de discursos e poéticas, seja de suportes ou meios. A criação artística não pode ser julgada por conceitos que a enquadrem em meras declarações de morte “desta” ou “daquela” tendência ou procedimento. É perfeitamente válido o artista dedicar-se ao meio pictórico hoje. Embora possa parecer quase uma heresia ser pintor, tão banalizado o ofício se tornou num meio em que convivem desgastes de mercado e desvios de discernimento crítico.

 

A preponderância dos discursos teóricos que privilegiaram a materialidade pictórica e tridimensional no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90 trouxe como resultado a exclusão de toda produção artística que não aderia a esses cânones. Como conseqüência criou-se um mal-estar, por sua vez causador de uma adversidade no meio artístico que até hoje ronda a pintura: rechaçam-se a estetização e a diluição dos discursos presentes na arte moderna, como também sua incorporação oportunista feita por osmose. Foram tachados de “formalistas” aqueles que permaneceram identificados com um certo grupo de ações e conteúdos circunscritos e agora patina ao redor dos acontecimentos na cena contemporânea na vã tentativa de se equilibrar sobre seus corrimões de papel...

 

Mas a obra de Canale manteve-se ilesa e passou ao largo da pobreza que caracteriza o atual panorama da pintura brasileira. Juntamente com ela, alguns artistas da sua geração permaneceram: Marina Saleme, Nelson Screnci, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Carlos Uchoa são alguns exemplos de artistas que constituíram universos pictóricos próprios, longe dos guetos e das perspectivas de reserva de mercado.

 

A pintura de Canale atravessou o milênio e chega em 2003 sem a pretensão do novo ou do original, mas com a densidade de quem conhece o percurso das vanguardas históricas. Esta a consciência fundamental necessária ao pintor dos nossos tempos: noções bem fundadas na história da arte. Em Canale, acima de tudo, contrariando certas teses que afirmam que a pintura brasileira não se funda na tradição, identifica-se, ao longo da sua obra, uma certa luminosidade... esta luminosidade, impregnada da ambiência e da paisagem carioca, revela um olhar que passeou também pela história da arte brasileira: a presença de pintores que se dedicaram à construção de um imaginário brasileiro, como Visconti, Grimm, Pancetti e Guignard transparece na sensualidade que perpassa a luz na pintura de Canale.

 

A artista construiu uma obra de limites entre figuração e abstração:da impregnação matérica em suas obras do início dos anos noventa – chegando muitas vezes a depositar os pigmentos diretamente do tubo de tinta sobre a tela nas paisagens que traduzem a luminosidade do Rio de Janeiro – à diluição do cromatismo presente em suas telas mais recentes, Canale foi abrindo espaço para que se evidenciasse a presença do linear. A linha passou a integrar o seu universo gerando uma espacialidade na tela que pode ser traduzida por diversidade de planos e profundidades. Se antes a matéria farta constituía o repertório tátil da tela, agora as linhas operam para constituir uma inversão no mecanismo do olhar e da fruição propriamente dita.

 

Mas a linha sempre esteve subjacente na pintura da artista. Mesmo camuflado pelas massas cromáticas, o linear é que configura o pictórico nas obras de Canale.Se hoje as suas representações tratam de interiores, de objetos banais, de assuntos do cotidiano e de paisagens, é porque todas elas são delírios, ilusões líricas que constituem um pretexto para pintar. Para Canale, a pintura é essencial como forma de vida, é uma espécie de esgrima, um duelo que se exerce no cotidiano e que em última instância se destrava no embate com a tela. É um diálogo consigo mesma, por meio do qual testa sua capacidade de chegar a um extremo que se materializa na concreção física da obra. É certo que Cézanne e Monet sempre informaram seu universo pictórico. Os excessos que se configuravam nas paisagens criadas por ela entre 1990 e 1992 - nas quais as massas de matéria espessa evidenciavam um conflito entre as formas (hoje grafismos) e o pictórico - reaparecem na materialidade diluída, agora pura luz, transmutados por um olhar que absorve a lição da pintura impressionista e a desloca para a apreensão do cotidiano, dos universos domésticos, da interioridade. A busca da intimidade do lugar, de um sinal de vida, de um movimento, desencadeia um processo e um espaço de ordenação da existência mesma, horizonte que se descortina e consolida uma subjetividade contemporânea mediante o rastro da pintura.

 

 

 

BOUSSO, Daniela. Cat. exposição individual no Paço das Artes, São Paulo, 2003.

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