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Cabeças / falantes


Clarissa Diniz | 2018


 

Arestas do corpo estão há tempos acompanhando Cristina Canale. Se Talkative (2018), uma de suas recentes pinturas, traz para o front uma espécie de fala-navalha capaz de rasgar o rosto – esse monólito que, num retrato, tende a marginalizar tudo aquilo que não o constitui –, tal relação figura-fundo é eco de outras angulosidades de sua trajetória, já expressas, por exemplo, em suas pinturas de 1985.

 

Assim como, em Talkative, o retrato é uma espécie de disparador para a disputa entre as hierarquias da composição, naquele momento um beijo era o mote para um incontornável rasgo no espaço que a pintura operava. Constituída por partes recortadas e coladas, a pintura de 33 anos atrás não tinha seus corpos fendidos pelo fundo, mas rasgava o espaço justamente por seu corpo pictórico, acotovelando-o num abraço. 

 

Como gérmen, ali já estava o interesse da artista pelo que circunscreve como “tensão na convivência entre contraditórios”, eixo central de sua investigação pictórica desde que, no final dos anos 1980, foi além do empaste tão característico do início de sua obra, emancipando a cor, a forma e a matéria de corporeidades totalitárias. Despregadas das grandes massas – que, grosso modo, eram estruturantes de suas primeiras pinturas –, essas puderam, finalmente, conflitar-se, formando o território das décadas seguintes da produção de Cristina Canale.

 

Esse desconjuntamento e a subsequente disputa – entre as partes da composição ancoram-se, sem dúvida, na tensão entre figuração e “situação abstrata”. Diferentemente da abstração como negação da representação, as situações abstratas de Canale são formas, manchas, presenças não reconhecíveis, não nomináveis, mas, por outro lado, generosas o suficiente para porventura se comportarem como estampas, padronagens, líquidos, fumaça, vegetação. Não pretendem significar e, por isso, tampouco ignoram ou programaticamente se opõem à significação. Operam, por sua vez, a partir de outro regime de sentidos, no qual o duopólio figuração abstração não é incontornavelmente hegemônico.

 

Aquilo que é representação e aquilo que é presença não indicial nas pinturas de Canale integram uma equação delicada – porém fundamentalmente – diversa desse duopólio, pautada pela “dosagem mínima de contexto para o máximo de contextualização possível”, ou seja: tender ao zero a presença de elementos indicativos de algum contexto não intrínseco à pintura para, assim, potencializar ao máximo a mútua contextualização entre as formas pictóricas. Tem-se mais um regime de intensidades do que uma construção vinculada às relações entre figura e fundo, signo e forma.

 

Em suas pinturas, é sobretudo por meio da cor que essas intensidades vão se configurando e negociam espaço, densidade e movimento entre si. Na produção da artista, desde cedo é a cor (e não o traço ou os planos) que tem “força dimensional”, fundando arranjos pictóricos que organizam níveis no espaço sem que, todavia, esses se comportem de acordo com a exatidão planar da tradição euclidiana. Por organizar e hierarquizar a espacialidade da pintura, como sublinha Canale, a “cor é funcional”. Preponderantemente, contudo, ela é intensiva, fazendo “vibrar” as coisas em seus lugares e estados, animando o que poderia parecer estável se não fosse continuamente inquietado por uma espécie de viço que emana das cores.

 

Como fica especialmente evidente nas pinturas de pequenos formatos aqui exibidas, a economia cromática da artista apoiasse em fluxos criados por diferenças intensivas, de tons médios, que conduzem nossa percepção através da pintura até que esbarramos em alguma cor estranha àquela gama, produzindo um sobressalto que depois será novamente acolhido por outra sequência de médios tons, evitando, com isso, certo ping-pong (eminentemente gráfico, quando não estridente) característico de alguns artistas que, assim como Canale, surgiram nos anos 1980 em meio a uma retomada da pintura de matriz expressionista.

 

É esse modo de circulação da cor que sustenta pinturas como Ella (2018) ou Nuvens e sombras (2018), nas quais o monopólio de uma gama cromática é desafiado por alguma presença cromaticamente insurgente, como o rosa vibrante que invade as laterais de Ella. Ou como a conjunção de brancos entre a cadeira e uma mancha esbranquiçada que forma um eixo vertebral em Nuvens e sombras, impondo-se mais à frente do plano e, com isso, tornando vaga a espacialidade transformada num proto fundo que quase não chega a se estabelecer como tal por não se fixar como chão, ou parede.

 

Na recente produção de Cristina Canale, essas dinâmicas da cor adquirem outras singularidades pela coincidência entre tema, forma e matéria. É o que acontece quando, por exemplo, a vestimenta da personagem tem sua padronagem transbordada para outras partes da pintura, em certos casos fazendo-o por meio da colagem de um tecido em si mesmo estampado. A cor é força propulsora desse jogo de reversibilidades entre figuração, abstração e ‘ornamento’, o que não apenas complexifica o atual empreendimento pictórico da artista como, mais adiante, o inscreve, com suas particularidades formais, num território historicamente temático – aquele da tradição dos retratos femininos na pintura.

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Percorrer a produção dos últimos 10 anos de Cristina Canale dá a ver o quanto o formato clássico do portrait tem, pouco a pouco, se apresentado como território para as investigações intensivas que, como a cor e a plasticidade, a trouxeram até aqui. Com os retratos, forçosamente vieram para o primeiríssimo plano da pintura os campos mais ou menos homogêneos de cor que costumavam circunscrever as figuras que outrora protagonizavam suas telas, a exemplo das pinturas produzidas na primeira década dos anos 2000.

 

São rostos chapados, de traços ausentes, que engendram essa reversão entre o que costumava ser “fundo” (campos de tendência monocromática) e aquilo que, portanto, passa a ser alçado ao status de “figura”. Muitas vezes formados pelo tecido cru do suporte, com o acréscimo de poucas e aguadas pinceladas, os rostos das mulheres de Canale encenam a função de fundo por sua minimização de forma e de subjetividade, as quais, por sua vez, transferem-se para a área circundante dos retratos, cujos acontecimentos pictóricos adquirem, retroativamente, algo como o status de sujeitos, prenhes que estão de intencionalidade.

 

Chega-se, nesse processo, à radicalidade de pinturas como Talkative ou Smoke (2017), nas quais o protagonismo das subjetividades retratadas é disputado vorazmente por uma pintura em seu todo subjetivada, na qual tudo aquilo que não é o rosto não apenas escapa à tradição de ser fundo como, mais adiante, ao irradiar-se sobre a figura, rivaliza com ela em termos de centralidade espacial, formal e simbólica. Fenômeno que igualmente se dá em Sacolinha (2017) e Fenster (vitrine) (2018), nas quais não é um rosto, mas um objeto, que tem seu protagonismo posto à prova por um modo compositivo “tensionado pela convivência entre contraditórios”, nas palavras da artista.

 

Perfaz esse processo, ainda, o imaginário convocado por Cristina Canale por meio de seus retratos, cujos elementos identificáveis – cigarros, colares, bolsas, brincos e saltos – em sua maioria remontam à gramática glamourosa da moda dos anos 1950. Se, nos editoriais de moda de então, a extravagância das subjetividades visava ‘reativar’ seu poder e sua feminilidade por meio do luxo reerguido do pós-guerra, é justamente o abafamento desse esbanjamento que opera como motriz da reversão perpetrada pela artista. Retratos de expressões faciais inexistentes, padronagens difusas e traços grossos (pouco condizentes com a delicadeza drapeada das formas do New look da Dior, por exemplo) destacam a redistribuição de poder entre as partes e as forças constitutivas de sua pintura.

 

Para fazê-lo, Canale recorre ao retrato e, com isso, evita grandes temas ou narrativas: “eu não gosto de retratar nada muito dramático. Eu prefiro que sejam cenas banais, e que a intensidade venha de outra coisa, da cor, da relação com a forma estética com a figura”(1). Para a artista, não interessa o “drama ou a desgraça do mundo”, mas certo “engordamento denso” das situações cotidianas, configurando atmosferas que, por sua estranheza, favoreçam o trânsito entre as hierarquias pictóricas mesmo em um dos mais tradicionais gêneros da arte, o retrato. Nesse sentido, no esforço de engordar a ordinariedade da vida, Cristina recorre à iconografia, colecionando imagens e estampas que possam vir a lhe motivar pinturas. Dessas imagens, muitas são advindas de editoriais de moda, nos quais os corpos são, em suas palavras, “descotidianizados” pela estilização ou ficcionalização de suas Subjetividades.

 

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Nesse recente conjunto de pinturas salta aos olhos a imagem de uma mulher negra, Mãe (2018), o único perfil da série de retratos. Marcado pela ausência de adereços e gestos, o retrato tem na vestimenta da mulher seu aspecto central, por meio do branco que encontra continuidade entre o turbante e o vestido, e o tecido listrado que, costurado ao linho da tela, torna-se suporte não somente para a parte inferior da pintura, bem como – fazendo coincidir forma, tema e matéria – performa o tecido que, na imagem, sustenta o bebê trazido nas costas da retratada. 

 

A imagem dessa mulher escravizada, fotografada na Bahia do século XIX por Marc Ferrez (Negra com seu filho, 1884. Coleção IMS), integra a memória da colonialidade brasileira. Evidente – na relação entre trabalho escravo e maternidade – está a ferida da escravidão, ainda hoje aberta e que, já naquele momento, adquirira contornos perversos a partir da Lei do Ventre Livre (1871), de modo tal que os seres ali representados, mãe e filho, pertenciam a regimes distintos de existência e de humanidade. 

 

Distintivo é também o olhar antropológico de Ferrez, responsável por isolar mulher e filho de seu contexto social e fotografá-los como num editorial de moda da sociedade brasileira, operação levada ao extremo por Canale ao, em sua pintura, excluir a bandeja de bananas que, na fotografia, a mulher carregava na cabeça, produzindo um retrato também apenas insinuado no que tange à representação do bebê à tiracolo. Por outro lado, diferindo do fundo monocromático de Marc Ferrez, a pintura busca compor – por meio dos procedimentos de intensidade e de cor indicados ao longo deste texto – uma atmosfera de subjetividade não circunscrita à rostidade da mulher, senão impregnada por toda sua espacialidade, imantada por aquela presença feminina, ao passo que imantando-a.

 

Encontram pouco lugar, todavia, as arestas daquele corpo escravizado e sua história social. Ainda que eminentemente estático e anguloso, o perfil da mãe negra não chega a acotovelar o espaço, tampouco é por ele abraçado, engendrando uma estranheza politicamente imprecisa. Face ao conjunto das pinturas recentes de Canale, Mãe é especialmente solitária posto que não é possível encontrar equivalência entre ela e o repertório de gestos dos trabalhos de pequeno formato, curto-circuitando o jogo de correspondências que, sem dificuldade, experimentamos diante das demais obras da coleção.

 

Talvez estejamos, portanto, diante de um ponto de inflexão dos retratos de Cristina Canale, ali onde o corpo, tão identificado e traumatizado por uma história e seu inextricável imaginário, já não consegue bastar-se diante de nosso olhar. Se temos algo que tolhe a intensividade de Mãe e igualmente nos trava diante dela, talvez seja porque algo extrínseco à pintura, situado fora de sua onipotência formal, se impõe. Arestas que não cabem na retangular territorialidade pictórica e que, demandando outros modos de sua inscrição no espaço – também social –, parecem advertir-nos de que há algo que, insinuando-se desde os cotovelos de 1985, ainda pede passagem.

 

(1) INSTITUTOFF. “Cristina Canale – Protagonista e Domingo – IFF”. YouTube, 09 mai. 2016, 0’15”. Disponível em: <https://youtu.be/AwcNtm2pjk4>. Acesso em 29/10/2018.

Clarissa Diniz (Recife/PE, 1985): Curadora e escritora em arte. Graduada em Lic. Ed. Artística/Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); mestre pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGA/UERJ); e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ).

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