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Caminhos da pintura e o peixe amarelo*

Luiz Camillo Osorio | 2010

 

A ida para Berlim em meados da década de 1990 deu à pintura de Cristina Canale uma personalidade própria, um estilo singular. Se já se destacava entre os pares da geração 80, a partir daí sua obra ganhou força incontestável. Seu compromisso com a pintura, ao contrário de lançá-la para fora do seu tempo, vai comprometê-la com as múltiplas temporalidades que convivem e se enfrentam no presente. 

 

Sua pincelada assume a crença moderna na potência autônoma da forma. A experiência da pintura deve se sustentar por si mesma, sem se pautar em uma referência externa, nem tampouco se isolar numa intransitividade que recuse o mundo. Não se trata de uma crença arbitrária e formalista, indiferente às questões do presente, mas de uma aposta na capacidade de o olhar criar para si desejos e sentidos próprios. O tempo do olhar potencializa a experiência e não se esgota na identificação de algo fora dela. Seja na aspereza mais opaca da série dos botânicos, seja na vibração cromática das pinturas mais recentes, sua obra cativa o espectador no primeiro contato. Diante de suas telas surge-nos uma figuração que parece existir por si, independentemente das convenções pictóricas que estruturam o aparecer das coisas. Há uma intensidade plástica que convoca o olhar sem um sentido dado de antemão. Convocação que põe o olho a trabalhar na difícil transformação da mera sensação em sugestão de sentido. 

 

Há familiaridade no que vemos: com plantas, jardins, cenas casuais, uma temática simples e desprovida de tragicidade – característica que dissolve a influência expressionista. Nesse aspecto, a calma, o luxo e a voluptuosidade das telas de Matisse lhe falam mais de perto. Sem perda, todavia, da intensidade cromática e da sensualidade da pincelada. Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon, faz uma observação sobre a cor que interessa resgatar aqui: o colorismo não significa apenas cores que entram em relação (como em toda pintura digna desse nome), mas a cor que é descoberta como a relação variável, a relação diferencial de que depende todo o resto [...] se a cor é perfeita, quer dizer, se suas relações foram desenvolvidas por elas mesmas, você tem tudo, a forma e o fundo, o claro e o escuro. [1] Nas pinturas de Canale vemos que são as relações de cor que articulam as figuras no espaço, atraindo os corpos, dilatando ou comprimindo as formas, enfim, criando campos de força que mobilizam a nossa percepção. 

 

As figuras aparecem nas pinturas de Cristina Canale como se brotassem na própria tela. Na série orgânica, então, isso é mais evidente. Há tanta cumplicidade entre as figuras e o fundo, entre a linha e a cor, que a impressão é de que elas vieram de dentro, como pequenas células que repentinamente germinaram e cresceram na superfície do quadro. É como se a figura fosse surgindo para potencializar campos/massas de cor postos em tensão. Não é tanto um exercício de precisão da linha, mas de contenção e expansão de uma energia cromática. De início, seja através de esboços realizados ao ar livre ou de fotografias tiradas de algum motivo interessante, há uma sugestão figurativa, mas será na execução da pintura que a artista define, pela constituição dos campos de cor, quais os elementos que de fato permanecerão na tela. 

 

A presença da figura é um ponto importante para a discussão de seu vínculo com a tradição moderna. Digo isso, na medida em que se tomou a abstração, a partir de uma leitura modernista simplificadora, como recusa da figura. Esta, todavia, não é toda a verdade da pintura moderna. Toda uma vertente expressionista, passando por Giacometti e Francis Bacon, assume a figura, assumindo, concomitantemente, a liberdade do acontecimento pictórico. A linha, a cor, os planos, elementos constituintes da “razão abstrata”, estão na origem de todo processo de figuração. Em vez de tomar a abstração como uma superação da figura, esta é que seria um desdobramento daquela. A figuração só assume qualidade pictórica uma vez constituída uma afecção na superfície da tela dada pelos elementos “abstratos” da pintura.

 

Nestas suas pinturas recentes, há um esforço construtivo da linha que se mostra através da articulação geométrica do espaço. A presença mais evidente da figura junto com a energia cromática de costume poderia saturar a superfície pictórica, não fosse esta contenção dada pela estruturação mais gráfica do espaço. Ao falar destas pinturas mais recentes, a artista declara que se sente “mais atenta à estrutura do quadro, meio que para rebater a figuração. Tenho procurado mais nitidez na estrutura,  planos mais próximos, os campos de cor mais nítidos etc. Acho que no caso destes trabalhos com animais, entrou mais humor também”. [2] Esta maior nitidez estrutural da linha aparece mais nas pinturas do que nos desenhos. Onde a cor está mais diluída e os vazios deixam as massas de cor respirar, a linha pode ser mais solta e divagante. 

 

O que se percebe nestas obras de Cristina Canale é uma atenção obstinada em relação aos meios da própria pintura – sua faceta moderna – ao mesmo tempo em que eles produzem na superfície da tela um repertório de sensações que intensificam nossa abertura para o mundo. Ao contrário da tradição figurativa, não há uma cena anterior ao quadro, mas algo que se desenvolve a partir do jogo de forças entre potências cromáticas e gráficas. É uma figuração sem representação, sem narração, construída a partir de sensações pictóricas e em nome de uma libertação das formas de ver em relação aos modelos achatados de visibilidade.

 

Acima de tudo, a pintura de Canale é mais mancha do que linha, submetendo a figura às palpitações cromáticas e não deixando o contorno se estabilizar. Nessa vibração, as coisas não se acomodam e estão sempre se contaminando, em constante metamorfose. Em um pequeno conto intitulado “Teoria das cores”, o poeta português Herberto Helder nos fala de um pintor e de um peixe vermelho. Quando chegava à tonalidade desejada na tela eis que surge no peixe um nó preto atrás da cor encarnada. Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo. Esta liberdade, que é uma espécie de fidelidade do artista à máxima poética de fazer ver sem se prender ao já visto, dá à pintura de Cristina Canale um frescor próprio. E, à pintura, uma atualidade necessária, de modo a multiplicar os modos e o tempo da nossa percepção das coisas.   

 

 

OSORIO, Luiz Camillo. Cat. exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, julho-agosto 2010.

 

[*] Este texto é uma versão ampliada e retrabalhada do que foi publicado anteriormente pela Galeria Nara Roesler, São Paulo, julho-agosto 2008.

[1] Gilles Deleuze. Francis Bacon: lógica das sensações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 138-139. 

 

[2] Observações apresentadas em troca de e-mails da artista com o autor no mês de abril de 2008.

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